sábado, 10 de junho de 2023

O 10 de Junho do nosso descontentamento

O 10 de Junho é um cadáver exumado anualmente em soturnas comemorações oficiais.
Os EUA exaltam o 4 de julho, data da declaração da Independência, e fazem desse dia a festa nacional. Que melhor razão para celebrar o dia do que o nascimento do país, que promulga uma constituição avançada e declara o direito à felicidade?
A França fez da tomada da Bastilha, em 14 de julho, o símbolo da liberdade, a festa da Revolução que aboliu as velhas monarquias de direito divino e deu origem às modernas democracias governadas por cidadãos que o voto popular escrutina.
O Estado português escolheu, não a independência, não a glória das descobertas, não a liberdade, mas o óbito de um poeta, singular e grande, é certo, mas a morte, nem sequer o nascimento cuja data e local ignora.
Os EUA e a França celebram a liberdade e os povos exultam, Portugal evoca a morte e os portugueses deprimem-se. O dia 10 de Junho era na ditadura o «Dia de Camões, de Portugal e da Raça». Era um dia de nojo, na dupla aceção, com os carrascos a distribuir veneras pelas viúvas, pais e irmãos dos militares mortos na guerra colonial.
Hoje, em democracia, o dia 10 de Junho apenas perdeu a Raça. É o Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas. Não é festa, é velório.
Portugal tem uma Revolução para festejar o seu dia, o dia que fez a síntese do melhor que herdámos do liberalismo e do 5 de Outubro, a madrugada que emocionou o Mundo e libertou Portugal da mais longa ditadura do Século XX – o 25 de Abril.
Portugal prefere o velório à festa, a véspera da perda da independência à alvorada da libertação, a continuidade das cerimónias da ditadura à aurora de todas as liberdades, à festa do povo e à grandeza épica do 5 de Outubro e do 25 de Abril.
A exaltação da data, a nível nacional, deve-se ao salazarismo que aproveitou os heróis da República, expurgando-os do sentido positivista e laico que os republicanos lhes atribuíram, e introduzindo um sentido nacionalista adequado à propaganda fascista.
O Presidente da República, versão civil e culta de Américo Tomás, começou este ano a comemorar a data, em Braga, no seu jeito excessivo, talvez saudoso de um 28 de maio que abateu a liberdade.
Américo Tomás era diferente, nunca foi eleito democraticamente, mas a liturgia pouco mudou na coreografia pífia.
O atual Presidente da República, de Braga a Peso da Régua, parecia, na sanha contra o Governo, seguir os passos do marechal Gomes da Costa a marchar sobre Lisboa. Hoje, como em 1926, os amigos dirão que é para «tirar o Governo aos devoristas e sanguessugas da República» e os adversários que «é o caminho para a ditadura» em cujo ambiente foi educado.

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