domingo, 23 de outubro de 2022

Como assegurar a diversidade de cogumelos (e outros fungos) num espaço verde

Cogumelos do choupo (Cyclocybe aegerita)

Em Portugal, estima-se que há cerca de 3.000 espécies diferentes de macrofungos (os fungos que produzem cogumelos), embora ainda sem certezas sobre o número exato. Susana Gonçalves, investigadora ligada ao Centro de Ecologia Funcional e ao MyCoLAB da Universidade de Coimbra e bióloga que se dedica à investigação sobre estes pequenos seres, lembra que são muitas vezes olhados como “o parente pobre” da vida na Terra, mas têm um papel importantíssimo: são os principais decompositores da natureza, reciclando as árvores e outra matéria vegetal, e estabelecem parcerias de mútuo benefício com 80 a 90% das plantas do globo. “Sem fungos, a vida no planeta não existiria tal como a conhecemos”, sublinha a investigadora, que no passado dia 23 de outubro realizou uma visita orientada sobre “Jardins, cogumelos e o fantástico reino fungi”, no Jardim Gulbenkian.

Mas afinal, o que são os fungos? Susana Gonçalves adianta que são seres eucariotas, pois tal como os animais e as plantas possuem células com núcleo. Por outro lado, precisam de carbono para sobreviver, que conseguem ir buscar “por absorção”. “Emanam enzimas que decompõem a matéria em redor, que depois absorvem.”

A grande maioria dos fungos é filamentosa, pois possuem uns filamentos muito fininhos a que se dá o nome de hifas, que por sua vez formam conjuntos que têm o nome de micélio. À laia de comparação, Susana explica que o micélio é como se fosse o nosso cabelo e cada um dos cabelos que o compõem fosse uma hifa.

Ao contrário do nosso cabelo, no entanto, o micélio costuma estar bem escondido, muitas vezes debaixo da terra. Só os cogumelos que irrompem do solo ou das árvores, o que acontece mais no outono, sinalizam que por ali há fungos, e é graças a isso que “podemos observar os heróis invisíveis do jardim alguns dias por ano”. Mas o que são cogumelos? São “estruturas reprodutoras que alguns fungos produzem”, descreve a investigadora, e estão para aqueles “como as maçãs estão para uma macieira”.

Agaricus sp. © Paula Côrte-Real

Agaricus sp. © Paula Côrte-Real

O que podemos fazer
Susana Gonçalves indica várias medidas para assegurarmos a conservação e a diversidade das espécies deste grupo, ao cuidarmos de um espaço verde:
  1. Planear jardins com diferentes micro-habitats (prado, bosquete, alternar bordaduras e áreas de cultivo) e com plantas diversificadas e autóctones.
  2. Evitar fertilizantes inorgânicos, que prejudicam um grupo importantíssimo de fungos do solo, os fungos micorrízicos, presentes nas raízes de 80-90% das plantas. Estes fungos exploram o solo em busca de nutrientes naturalmente existentes no solo e passam-nos para as plantas em troca de carbono que aquelas produzem através da fotossíntese.
  3. Não utilizar fungicidas, pois usados em excesso contribuem para a evolução de fungos multi-resistentes, que podem constituir ameaças para a saúde pública. Para além disso, frequentemente têm efeitos nefastos em espécies que não são as espécies-alvo.
  4. Deixar madeira morta no terreno, pois pequenos ramos, touças e troncos caídos são fundamentais para os fungos decompositores da madeira, e além disso, se forem inoculados com espécies apropriadas, podem proporcionar cogumelos para alimentação. A madeira em decomposição, por seu turno, é fundamental para sustentar toda uma comunidade de organismos, nomeadamente as larvas de muitos insetos.
  5. Deixar árvores veteranas de pé, desde que não haja perigo de queda, que deverá ser avaliado e monitorizado ao longo dos anos. As cavidades existentes em árvores velhas resultam da ação de fungos parasitas e, por sua vez, constituem abrigo para muitos outros seres vivos, como aves que aí nidificam ou pequenos mamíferos que aí dormem ou hibernam (morcegos, ouriços-cacheiros, texugos, esquilos).
  6. Não mobilizar excessivamente o solo antes das plantações/sementeiras para não “romper” as redes subterrâneas de micélio.
  7. Não deixar o solo nu, prevenindo a erosão e a dessecação.
  8. Evitar a compactação do solo, não pisando sempre nos mesmos locais, o que tem efeito negativo sobre as redes subterrâneas de micélio.
  9. Plantar árvores e arbustos diversos e autóctones nos jardins e bordaduras, o que vai trazer fungos ectomicorrízicos para o jardim e com eles belos cogumelos silvestres. Se houver o perigo de ingestão por crianças ou animais de companhia, basta cortar e descartar os cogumelos que forem aparecendo.
Brigada de lixo e parceiros das árvores
Nem todos os fungos vivem da mesma forma. Entre os fungos filamentosos, desde logo, existem três tipos principais, incluindo os saprófitas, “a brigada de lixo da natureza”. “Um tronco que caia ao chão já não está lá ao fim de algum tempo, porque entretanto os fungos fizeram o seu trabalho”, menciona a investigadora da Universidade de Coimbra, que sublinha que estes seres “são os únicos capazes de decompor os polímeros complexos que constituem a madeira”. No Jardim Gulbenkian, por exemplo, podem ver-se cogumelos do choupo (Cyclocybe aegerita), que se alimentam das partes mortas das raízes dos choupos estão num relvado ali perto. Dentro do mesmo grupo, neste espaço verde também se podem ver cogumelos do género Ganoderma e ainda o curioso gaiola-de-bruxa (Clathrus ruber).

Cogumelo do choupo Cyclocybe aegerita © Paula Côrte-Real

Pormenor do cogumelo do choupo Cyclocybe aegerita © Paula Côrte-Real

Já os fungos micorrízicos vivem em associação com as raízes das plantas, numa parceria em que estas sintetizam e fornecem carbono aos primeiros, que por sua vez exploram o solo e lhes dão os elementos minerais de que precisam. “Muitas das plantas em Portugal são dependentes de fungos micorrízicos”, afirma Susana, que distingue entre vários tipos de relações, diferentes consoante o tipo de fungos e plantas envolvidos.

Entre estas, uma das relações mais fascinantes são as ectomicorrizas, descobertas no final dos anos 1880. Nesses casos, “as pontas das raízes parece que calçaram uma meia de fungos”, brinca Susana, que esclarece que existem “imensos fungos que investiram neste tipo de relação”. Muitas vezes envolvendo árvores, as ectomicorrizas costumam associar fungos que frutificam como cogumelos silvestres muito apreciados – como boletos ou cantarelos – a carvalhos, pinheiros, abetos, bétulas e castanheiros, exemplifica.

Por fim, os fungos parasitas, ao contrário dos micorrízicos, são os únicos que beneficiam das relações que estabelecem. “Podem ser parasitas de árvores, insetos ou mesmo de outros fungos”, indica Susana, que esclarece que a morte do hospedeiro muitas vezes não é imediata. “Num sistema em equilíbrio, um fungo parasita e uma árvore podem coexistir por muitas décadas. Só quando a árvore fica fragilizada é que pode acabar por sucumbir.”

Aliás, sublinha a investigadora, alguns parasitas são muito importantes porque se alimentam da parte central da árvore, onde não passa seiva. “Devemos lembrar-nos que uma árvore pode viver infectada por um fungo parasita durante décadas antes de mostrar sintomas de doença e sucumbir. Esse mesmo fungo pode, por exemplo, contribuir para a criação de cavidades que, por sua vez, são importantes para insetos, aves e pequenos mamíferos.”

A relação dos fungos com outras espécies num jardim não se fica por aqui. Muitos cogumelos servem de casa a diferentes invertebrados. Já os esquilos e as lesmas preferem comê-los, tal como muitos humanos.

Chapéu-leitoso Lactarius torminosus © Paula Côrte-Real

Cogumelo esquizófilo-comum Schizophyllum commune © Paula Côrte-Real

Se for apanhar cogumelos
Quanto à apanha destas “maçãs” dos fungos para a alimentação, Susana deixa também alguns conselhos gerais:
  1. Não apanhar todos os cogumelos (apanhar 1/3 é uma boa regra) que estão a frutificar numa dada área. Por um lado, para que dispersem os esporos; por outro, para que outros (humanos e outros animais) também possam usufruir deles.
  2. Apanhar apenas cogumelos maduros, que já libertaram os esporos (e que também são mais difíceis de ser confundidos com espécies tóxicas).
  3. Não usar ancinhos ou outras ferramentas que perturbem o solo.
  4. Repor sempre folhas mortas, musgos ou ramos que possam ter sido remexidos durante a apanha para prevenir a dessecação do solo e promover a integridade do habitat.
  5. Não apanhar sempre na mesma área para evitar a compactação do solo devido ao pisoteio.
  6. Usar cestos, que permitem a dispersão dos esporos e promovem o arejamento.
E por último, termos sempre certeza absoluta da espécie que apanhámos, pois a ingestão do cogumelo errado pode levar à morte, o que já sucedeu a famílias inteiras. “Em caso de dúvida, não coma!!”, alerta a mesma responsável.

O Jardim Gulbenkian promove um conjunto de visitas sobre como tornar os nossos jardins, parques e terrenos, tanto no interior das cidades como fora, em espaços mais acolhedores para vida silvestre – fundamental para a vida na Terra! Estas visitas são acompanhadas pela revista Wilder que, em parceria com a Fundação Gulbenkian, publica artigos sobre cada um dos temas.

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