domingo, 23 de outubro de 2022

LGBTfobia e o desenvolvimento sustentável


A invisibilidade é um dos maiores desafios para a comunidade LGBT+ em seu ser/estar no mundo. Assim como não é possível desenhar boas estratégias de conservação ambiental sem considerar adequadamente o bioma, as comunidades e as culturas locais, dificilmente conseguiremos prosperar como sociedade enquanto parte de nós estiver invisibilizada frente às diversas instituições, às políticas públicas, à economia e ao Estado. Assim como a padronização e a homogeneização da natureza vem adoecendo o mundo, a padronização e a homogeneização da sociedade adoece a humanidade e gera conflito e desigualdade estrutural.

É importante entendermos que as lógicas que buscam padronizar e homogeneizar corpos, experiências e desejos conflitam com as lógicas de povos, comunidades e grupos sociais que se organizam e se fortalecem a partir de práticas de diversidade. Em ‘Gay Indians in Brazil’ (2017), Estevão Fernandes e Barbara Arisi discutem a colonização da sexualidade e como a heteronormatividade, ou seja, a visão de que apenas a heterossexualidade é normal ou correta, estabeleceu padrões de sexualidade para a experiência sexual dos povos indígenas.

Ante o poder da heteronormatividade a diversidade buscou novas estratégias de enfrentar a violência da invisibilidade. A LGBTfobia e suas muitas formas de manifestação, individuais e estruturais, contribuem para o apagamento da diversidade de gentes que povoam cada espaço social imaginável, para muito além da multidão que se agita sob a bandeira do arco-íris pelas ruas do mundo neste mês, simbolizado pelo orgulho e enfrentamento da invisibilidade.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, cerca de 1,9% da população brasileira se identifica como homossexual ou bissexual, o que corresponde a 2,9 milhões de pessoas com 18 anos completos ou mais. Entretanto, 1,1% da população (1,7 milhão de pessoas) disse não saber responder à questão e 2,3% (3,6 milhões) se recusaram a responder. Embora estes dados já pareçam expressivos, ainda não refletem o que uma pesquisa, como o recenseamento previsto para 2022, pode alcançar. Incluir no censo questões relativas à comunidade LGBT+ nos permitiria ter dados que forneçam uma maior diversidade de análises, assim como problematizar a invisibilidade.

Embora a coleta de dados oficiais seja imprescindível para o desenho e direcionamento adequado de políticas públicas, todos nós, nos espaços pessoais e profissionais, temos oportunidades diárias de promover o reconhecimento e a visibilidade de pessoas da comunidade LGBT+. Estas ações são de extrema importância para enfrentar o silenciamento e invisibilidade da diversidade.

Um exemplo famoso de silenciamento institucional foi a lei estadunidense conhecida como “Don’t Ask, Don’t Tell” (Não Pergunte, Não Conte, em tradução livre para o português). Instituída em 1993, a lei obrigava membros das forças armadas dos EUA a esconderem sua orientação sexual sob risco de expulsão. Poderiam, assim, lutar ou morrer pela pátria desde que seus armários de aço permanecessem devidamente trancados. A medida vigorou até 20 de setembro de 2011, quando foi revogada.

No Brasil, a Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e a resolução da diretoria colegiada – RDC 34/2014 da Anvisa, estabelecem critérios de seleção para potenciais doadores de sangue, considerando inaptos, dentre outros, homens que tiveram relações sexuais com outros homens e suas parceiras sexuais. Estas medidas reforçam o preconceito contra a população LGBT+, afastam, sem fundamentação jurídica ou científica, milhares de pessoas dos já esvaziados bancos de sangue do Brasil, ou impõe um silenciamento velado a doadores regulares. A discriminação imposta por estas medidas foi reconhecida pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5.543, julgada pelo STF em 2020.

Os dados da PNS 2019, que apresentamos antes, chamam nossa atenção tanto pelos resultados dos respondentes, quanto dos não respondentes, lembrando-nos que ausência de resposta também é um dado importante a ser analisado. A não-resposta pode nos levar a pensar sobre o porquê pessoas seguem preferindo não responder a questões que foram preparadas para reconhecer suas identidades. Será que as condições pessoais e coletivas permitiam que elas respondessem às questões, ou, então, quão acolhidas se sentiram diante de quem lhes perguntava.

A sociedade brasileira é extremamente desigual, e esta desigualdade apoia-se no preconceito tornando difícil avaliar com segurança de que lado da tomada de dados se encontram as maiores barreiras. É fato que quem não pergunta não tem respostas. As intersecções entre sexo, género e sexualidade podem tornar complexos os caminhos do diálogo num mundo mentalmente ‘binarizado’ entre meninas de rosa e meninos de azul. Assim, é fundamental que todes nós estejamos fortemente engajades e abertes pra pluralizar nossas mentes, corações e organizações.

A invisibilidade apoia-se no silêncio, no apagamento e na negação das experiências. Aqui, especificamente, quando discutimos a comunidade LGBT+, falamos da censura às expressões dos desejos relativos ao modo como cada um compreende seu corpo, identidade e afetos no mundo. Enfrentar o silêncio passa pelo reconhecimento, pela afirmação, pelo orgulho.

Institucionalmente, podemos pensar que passa pelo compromisso de produzir dados que nos permitam afirmar a diversidade de nossas equipes, assim como daquelas e daqueles com quem interagimos para construir um futuro possível em que todes, pessoas e natureza, prosperem. Aqui podemos pensar desde as medidas mais complexas, como grandes projetos de investigação ou ação em torno de políticas públicas afirmativas apoiadas em justiça ambiental, até instrumentos do cotidiano, como uma lista de presença.

Recentemente temos utilizado listas de presença em nossas atividades que buscam dar importância às identidades de gênero, buscando oportunizar as identidades ‘cis’, ‘trans’, ‘não binária’ e possibilitando a resposta ‘outres’. Qual não foi nossa surpresa quando percebemos que a inclusão da identidade ‘trans’ causou profundo desconforto entre pessoas ‘cis’, e mesmo a identificação ‘cis’ foi motivo de questionamento por pessoas cisgénero. Esta percepção nos levou a abrir nossas atividades com uma breve fala sobre identidades de gênero – assim vamos aprendendo e construindo juntes.

Enfrentar o silêncio não é uma tarefa fácil, são mais de 500 anos de colonização de experiências, saberes e sexualidades. Mas precisamos aprender como inventar novas formas de reconhecimento. O silêncio, como falamos, é violento, marca corpos, subjetividades, grupos, instituições e estados. Produzir dados, estabelecer diálogos e atuar na transformação nos permite contribuir de forma efetiva no compromisso por equidade e respeito às identidades.

*Teresa Moreira é especialista de governança ambiental, e Mônica Vilaça, é socióloga, ambas na nossa equipe da The Nature Conservancy (TNC) Brasil

2 comentários:

Carlos Faria disse...

Evidentemente que os 1,9% que se assumiram homo ou bi são já os que já saíram do armário, os que estão trancados não dizem nada e por isso na realidade o número deve ser mesmo muito superior.
Evidentemente que quando se vai trabalhar a sexualidade de indígenas a partir da sociedade estabelecida os preconceitos vão a par e como tal o preconceito de que a homossexualidade é uma situação da decadência do mundo ocidental vai influenciar esse trabalho.

João Soares disse...

Olá Carlos
Já alguns estudos antropológicos desenvolvidos no Brasil e EUA em relação à LGTfobia. Os indígenas norte-americano graças ao movimento two spirit, há maior aceitação deles na comunidade norte-americana. No Brasil, ainda há muito que fazer. No Pacífico já havia sociedades indígenas sem preconceitos. Tudo mais fácil.
Abraço