quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O que é a “desistência silenciosa”, a mais recente tendência no mundo do trabalho alimentada pelas redes sociais

No original, em inglês, é o "quiet quitting", o que tem levado os vários artigos já publicados online sobre o tema a esclarecerem que não, não se trata de simplesmente bater com a porta do emprego silenciosamente



O contrato especifica que o horário de trabalho é das 9h00 às 18h00? Então às 18h00, desliga-se o computador. Tarefas atribuídas? Sim, mas essas e mais nenhuma e só até àquela hora. Estes podem ser, resumidamente, os princípios do “quiet quitting”, que começou a ganhar tração na Internet depois de um utilizador, que agora responde por @zaidleppelin, ter publicado um vídeo no TikTok em que explicava que não se trata de uma demissão propriamente dita, mas uma demissão da ideia de ir mais além no trabalho.”Ainda cumpres os teus deveres mas já não subscreves a mentalidade de que o trabalho tem de ser a tua vida. Não é”, ouve-se.

Basicamente, trata-se de não executar tarefas para as quais não se recebe compensação financeira, ou, como resume o The Wall Street Journal, não fazer mais do que o necessário para manter o emprego.

No rescaldo pandémico, muitos começaram a dar outra importância ao bem-estar e à saúde mental, o que pode explicar esta tendência emergente nas gerações mais jovens, dispostas a dizer “não” ao burnout e a mudar o statu quo.

Do passa-a-palavra ao debate aceso na internet e na Imprensa internacional foi um ápice. O desprendimento emocional face ao trabalho tem agora um nome e um número crescente de adeptos, para quem não faz sentido vestir a camisola da organização para lá do estritamente necessário, com sacrifício de tempo e saúde e sem ganhos que o justifiquem.

Os resultados do relatório “State of the Global Workplace”, divulgado pela Gallup, sobre o local de trabalho e o bem-estar, parecem confirmar a tendência: o grau de envolvimento dos trabalhadores norte-americanos desceu para 32% no primeiro trimestre deste ano (era de 36% em 2020 e de 34% em 2021) e a percentagem de “não envolvidos” – que definem limites profissionais e cumprem os mínimos – aumentou para 17% (era de 14% em 2020 e de 16% em 2021). O coordenador do estudo, Jim Harter, afirmou ao The Wall Street Journal que mais de metade dos inquiridos deste grupo tinha idades iguais ou inferiores a 33 anos e a maioria cultivava a “desistência silenciosa”.

A causa pode estar na falta de entusiasmo e propósito, nas aspirações não atendidas pelos empregadores ou no facto de muitos terem percebido que trabalhar para aquecer não compensa, após verem familiares e amigos dispensados durante a pandemia, apesar dos seus esforços e da sua lealdade. As mensagens de Kahn no TikTok – “desfrutar a vida também é produtivo” – acabam por ser um abre-olhos para uma imensa minoria, gerando ondas de choque no meio corporativo.

“Tang ping”: a versão asiática (e prévia) do fenómeno

Curiosamente, esta postura face ao trabalho já estava a dar que falar desde o ano passado, na China, conhecida pela cultura materialista, de trabalho árduo, jornadas longas e salários baixos. Cansados da “corrida de ratos” em que as suas vidas estavam a tornar-se – e em protesto contra os valores que estavam na sua base – milhares de jovens chineses iniciaram uma forma de resistência insólita, passando a conduzir-se no registo “tang ping” (deitar-se ao comprido, ou, em língua inglesa, “lying flat”). Como a expressão sugere, a meta é não fazer nada, ou, se quisermos, atirar a toalha ao chão, virando costas aos ideais da cultura vigente: o carro, a casa, os filhos, o emprego e as horas extra (poupando-se ao lamento angustiante, tão bem retratado pela banda Talking Heads, na canção Once in a Lifetime, “Como é que eu cheguei aqui?”).

Radical? Talvez, ou nem por isso, se olharmos para este fenómeno como o contraponto da prosperidade económica e que não contempla, na perspetiva das gerações mais jovens, o que seriam os mínimos de bem-estar para se ter uma vida além da tal corrida laboral desenfreada. Não por acaso, o movimento nasceu num centro tecnológico em Shenzhen, no sudeste da China, onde impera a cultura “996” (trabalhar das 9h às 21h, seis dias por semana, num total de 72 horas, sem que seja garantido qualquer pagamento extra).

O “tang ping” tornou-se viral em abril de 2021 e o impacto foi tal que, em outubro, o presidente Xi Jinping emitiu um aviso aos jovens, num jornal do Partido Comunista Chinês. “Uma vida feliz alcança-se pela luta e a prosperidade depende do trabalho duro e da sabedoria”, assegurou, alertando para a necessidade de, entre outros, “formar um ambiente de desenvolvimento onde todos participem e evitar a ‘involução’ e o ‘deitar-se ao comprido’.”

Talvez não tenha sido suficiente para quebrar a resistência que, como seria expectável, se foi expandindo no mundo globalizado – da Austrália aos Estados Unidos e Europa – com cada vez mais jovens adultos a porem o dedo na ferida e a revoltarem-se contra a “asiatização” (precariedade) laboral e o desperdício de tempo de vida, que é só uma, em atividades não reconhecidas nem pagas.

“Já vais embora?”

“Hoje, nenhum jovem tem constrangimentos em desligar o computador e sair à hora”, assegura Vânia Borges, diretora de recursos humanos da Adecco. “As pessoas não estão a desistir do trabalho, só deixaram de pô-lo em primeiro lugar, para se focarem no que é importante para elas.” Mesmo que prolonguem o tempo de trabalho numa situação pontual, “não ficam até mais tarde no emprego por sistema, para evitar comentários ou parecer bem”.

A prática do presentismo, “ainda enraizada entre nós e que não beneficia ninguém”, é malvista noutros países europeus, onde as leis têm vindo a contemplar, entre outros, o direito à desconexão no meio corporativo. Em Portugal, as alterações ao Código do Trabalho aprovadas no ano passado penalizam empregadores que contactem os funcionários em período de descanso, e as mensagens de correio eletrónico “indevidas” trazem uma advertência, elucidando que o envio foi feito em horário inconveniente para o emissor e não requer resposta imediata.

Quando as aspirações não são atendidas pelos empregadores, instala-se o desprendimento emocional face ao trabalho – para quê vestir a camisola?

“As pessoas não são máquinas”, observa António Moura Queirós, responsável de consultoria organizacional da empresa Alento. “Trabalhar sempre acima do grau em que é suposto, excedendo expectativas, passa uma mensagem errada ao empregador, porque depois não se consegue manter esse ritmo e há o risco de burnout”, esclarece. A alternativa seria fazer ajustes, mas “há muita falta de assertividade para pedir um programa de outplacement e fazer uma transição sustentável de carreira, por exemplo”.

O consultor adianta que o quiet quitting se assemelha à quebra do contrato psicológico (expectativas e promessas tácitas entre as partes), e encara-o como um mecanismo de sobrevivência em climas organizacionais não saudáveis: “Lideranças sem transparência, que monitorizam os trabalhadores, não confiam na sua autonomia e capacidade produtiva tendem a perder talentos e a ter colaboradores não comprometidos.”

Em Portugal, “temos um tecido empresarial pouco amadurecido, sem programas de acolhimento claros, mapeamento de competências, sistemas de incentivos e perspetivas de progressão”. Porém, notam-se sinais de mudança: “As empresas começam a investir na gestão de pessoas, mais pela necessidade de atrair candidatos do que por terem um laivo de consciência instantâneo.”

Sem valores, nada feito

Hugo Bernardes, fundador e sócio-gerente da The Key Talent, entende que “a nossa cultura empresarial ainda não encara o envolvimento e a valorização do propósito de vida como um problema imediato”. O que pensar, então, do desabafo comum “Há muita gente que não quer trabalhar”? O psicólogo sublinha que “são as pessoas que escolhem as organizações e não o contrário”. E vê a escassez de colaboradores em certas áreas como um reflexo dos salários baixos: “Como diz uma famosa citação, se pagar em amendoins, terá macacos.”

As políticas de teletrabalho trouxeram novos desafios, na aculturação e no recrutamento: “A primeira coisa que pergunta quem concluiu o curso remotamente é qual a política de trabalho; se não for flexível, nem consideram a oportunidade.” O paradigma tem de mudar: “As organizações nem sempre são o que dizem ser; ou se alinham com os valores das pessoas e definem a sua proposta de valor ou nada feito.”

As novas gerações, influenciadas pela cultura Erasmus, “olham para os bens na perspetiva do uso e não da propriedade, querem ter experiências e tempo; o trabalho é uma componente da vida, nem sempre a principal”, afirma Luís Miguel Ribeiro, presidente da  Associação Empresarial de Portugal, que aposta em medidas para cativar colaboradores, como a oferta de seguros de saúde, o trabalho híbrido – a pensar na redução de custos de deslocação e no aumento das taxas de juro – e a criação de espaços para refeições e convívio.

Sobre a questão dos horários, Luís Miguel Ribeiro afirma tratar-se de um mito, até porque “ficar mais tempo no local de trabalho implica gastos extras, até de energia, e, caso aconteça, talvez seja preciso fazer ajustes”. No final de contas, “o bom senso e a razoabilidade resolvem grande parte dos desequilíbrios”.

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