Um novo estudo publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences indica que a maioria dos cães carrega, literalmente, um pedaço de lobo dentro de si.
Pesquisadores analisaram 2.693 genomas de cães e lobos e descobriram que 64% das raças actuais possuem pequenas quantidades de DNA de lobo — vestígios que teriam sido incorporados após a domesticação e que podem ter ajudado os cães a se adaptar a uma ampla variedade de ambientes humanos.
De acordo com a autora principal, Audrey Lin, baixos níveis de fluxo génico entre as duas espécies tiveram papel importante na formação dos cães como os conhecemos hoje.
A equipa lembra que, apesar de lobos e cães poderem cruzar, a troca genética entre eles é considerada rara desde a separação, que ocorreu no Pleistoceno Superior (120-10 mil anos atrás). Mesmo assim, todos os cães de rua analisados apresentaram algum DNA de lobo, indicando que a mistura persiste onde cães vivem soltos.
Raças com mais e menos influência dos lobos.
Entre as raças modernas, o Grande Cão Anglo-Francês Tricolor e o Pastor de Shiloh exibiram os maiores índices de ancestralidade lupina não intencional, com cerca de 5,7% e 2,7%.
Cães-lobo criados deliberadamente — como o cão-lobo checoslovaco e o cão-lobo de Saarloos — apresentaram níveis ainda mais altos, entre 23% e 40%.
Em contrapartida, grandes cães de guarda, como Mastim Napolitano, Bullmastiff e São Bernardo, não mostraram qualquer traço detectável de DNA de lobo.
Já algumas raças pequenas, incluindo o chihuahua, surpreenderam ao exibir pequenas frações desse material genético.
Padrões identificados
Ao cruzar dados genéticos com padrões de comportamento descritos nos registos de raça, os pesquisadores observaram correlações curiosas: raças com mais genes de lobo tendem a ser descritas como “independentes”, “territoriais” e “desconfiadas de estranhos”, enquanto aquelas com menor influência lupina são apontadas como “amigáveis”, “afetuosas” e “cheias de energia”.
Lin reforça que os resultados não provam causalidade — apenas sugerem padrões que exigem investigação mais profunda.
Apesar de milhares de anos de domesticação, os cães modernos continuam a carregar no seu genoma fragmentos herdados dos lobos, e esses fragmentos não são um simples vestígio do passado, mas sim o resultado de seleção natural. Os genes de origem lupina que persistem nos cães tendem a estar associados a funções biologicamente importantes, sobretudo aquelas que aumentaram a sobrevivência dos primeiros cães nos novos ambientes criados pela proximidade com os humanos.
Um dos grupos mais relevantes inclui genes ligados ao sistema imunitário, complexo maior de histocompatibilidade (MHC). À medida que os ancestrais dos cães passaram a viver perto de povoações humanas, ficaram expostos a novos patógenos, provenientes de pessoas, animais domésticos e resíduos. Genes herdados dos lobos, nomeadamente os envolvidos na resposta imunitária, ofereceram uma vantagem clara, ajudando os cães a resistir a infeções e a sobreviver em ambientes mais densos e biologicamente complexos.
Outro conjunto importante diz respeito ao metabolismo. Embora os cães tenham evoluído adaptações específicas para digerir alimentos ricos em amido, típicos da dieta humana, alguns genes metabólicos de lobo foram mantidos porque favoreciam uma utilização eficiente da energia e a sobrevivência em períodos de escassez alimentar. Nos primeiros estágios da domesticação, a dieta dos cães era irregular e oportunista, e a herança metabólica dos lobos continuou a ser útil.
Persistem também genes relacionados com o funcionamento do sistema nervoso e com o comportamento. A domesticação reduziu traços como a agressividade extrema, mas não eliminou características como a vigilância, a capacidade de aprendizagem, a resposta ao stress ou a sensibilidade a sinais sociais. Alguns destes traços, herdados dos lobos, revelaram-se compatíveis — e até vantajosos — na convivência com humanos, sendo por isso preservados ao longo das gerações.
Por fim, há genes associados à adaptação a diferentes ambientes, incluindo aqueles relacionados com a regulação da temperatura, a resistência física e o funcionamento cardiovascular. À medida que os cães acompanharam os humanos na expansão para regiões frias, montanhosas ou ecologicamente exigentes, a herança genética dos lobos contribuiu para essa capacidade de adaptação global.
Em conjunto, estes dados mostram que a domesticação dos cães não foi um processo de apagamento do genoma do lobo, mas sim de filtragem. Genes incompatíveis com a vida ao lado dos humanos foram progressivamente eliminados, enquanto genes neutros ou vantajosos foram mantidos. O resultado é um animal profundamente domesticado no comportamento e na ecologia, mas que continua, ao nível genético, a transportar uma parte significativa do seu passado selvagem.

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