quinta-feira, 23 de março de 2023

É possível boicotar supermercados? Eles tentam todos os dias, mas não é fácil

Enquanto conversam sobre música e futebol, João Mendes faz as compras da semana ao Sr. José, do Pomar Coutinho. Começou a visitar com mais frequência o pequeno supermercado local, no centro da Trofa, há seis anos, quando decidiu evitar ao máximo entrar em grandes cadeias de supermercados.


Reportagem Público
O copywriter freelancer de 38 anos virou as costas quando se apercebeu que “os legumes e a fruta que comprava nas grandes superfícies duravam pouquíssimo tempo” em comparação com os produtos que chegavam de familiares e amigos que tinham hortas. Pouco depois, reparou que no minimercado da sua rua os preços estavam muito abaixo do que via no hipermercado onde costumava comprar. Produto a produto, foi fazendo comparações e reparou que lhe compensava mais comprar no pequeno comércio.

João não é único a trocar as grandes superfícies, empurrado pelo que classifica de “preços e lucros excessivos”. Outros apontam como razões a preocupação com a sustentabilidade ambiental ou com a sobrevivência dos negócios locais. E há quem questione se um boicote generalizado, mesmo sabendo o quão difícil é mudar rotinas e encontrar alternativas equiparáveis, ajudaria a baixar os preços galopantes e a passar uma mensagem de descontentamento perante irregularidades detectadas pela ASAE e denunciadas por consumidores.

“Existe sempre um produto que me obriga a voltar”

Hoje, 90% das compras de João são feitas entre o Pomar de José Coutinho, o mercado semanal da Trofa e um talho que fica a dois minutos de casa. No entanto, por vezes, ainda se vê obrigado a ir comprar aos grandes: “Existe sempre um produto mais complexo que me obriga a ir a uma grande superfície como um creme, umas bolachas que o meu filho quer muito, uma garrafa de vinho e pouco mais.”

Quando começou a comprar mais regularmente no minimercado da sua rua, João Mendes decidiu comparar o preço de vários produtos com os praticados numa grande cadeia de hipermercados de um grupo nacional.

A primeira diferença que encontrou foi no café. A mesma caixa de quarenta cápsulas era 2,39 euros mais barata no minimercado. Mas rápido percebeu que gastava menos em muitos outros produtos. Em alguns casos, como o do gel de banho, o preço caiu para metade (menos 119%, calculou).

Ana Machado, 35 anos, gerente de um estúdio de fotografia no Porto, já há algumas semanas que evita por princípio fazer compras em grandes superfícies. Costumava visitar o supermercado três vezes por semana, agora vai duas a três por mês: “Neste momento, incomoda-me gastar dinheiro num supermercado. Do ponto de vista ideológico também já não se aceita. Não se justifica.”

A preocupação em ser mais sustentável também levou Stefanie Silva a reduzir as idas aos supermercados. Sendo vegetariana, a enfermeira de Viseu diz que não compra quase nenhuma da comida que consome em grandes superfícies. Porém, não vive sozinha. Normalmente, recorre a hipermercados para comprar comida para os animais, “alimentos processados” e outros que a granel sejam mais difíceis de encontrar.

A viver longe do centro da cidade, reconhece que nem sempre é fácil fazer as compras em locais mais sustentáveis. ​“Procurando ser sustentável a todos os níveis, tenho de me organizar quando me desloco ao centro da cidade para fazer tudo aquilo que preciso. Organizar muito bem, não só as compras mas também a deslocação”, diz.

Há mais de 30 anos que os alimentos não eram tão caros

Rosa Silva, trabalhadora independente de 55 anos, costumava fazer as compras sempre no mesmo hipermercado. No final de 2022, quando a subida dos preços se tornou “um abuso”, procurou alternativas. Agora, opta por mercados locais (onde, diz, a especulação também existe) e mercearias.

“Eu sou muito básica nas compras, não me estico muito. São sempre as mesmas coisas há anos e sou fiel às mesmas marcas. Portanto, há aqui um referencial muito claro quando as coisas aumentam de uma forma absurda”, conta. A título de exemplo, refere o caso da manteiga dos Açores, que costumava usar: “Passou de 1,69 euros para 2,30.”

Nos mercados, os preços nem sempre são mais baixos. Rosa Silva, costuma dirigir-se ao mercado de São João da Madeira e já percebeu que os preços flutuam ao longo do dia. Com o contacto certo, porém, pode-se poupar: “Sei que os preços são mais caros durante o dia. Mas já encontrei, ao ir às sete da manhã, a pessoa certa que tem produtos muito mais baratos, bons e frescos.”

Desde que começou a comprar mais fora de supermercados, Ana Machado já reparou que gasta menos: “Este mês nem gastei o plafond todo do cartão de alimentação.”

Um dia antes de a Rússia invadir a Ucrânia, um cabaz com 63 alimentos essenciais custava perto de 184 euros, segundo a DECO Proteste. Hoje, está 51 euros mais caro. Em termos percentuais, os produtos cujo preço mais subiu foram a couve coração (124%), a polpa de tomate (84%) e a cebola (80%).

Ainda que a inflação global esteja em queda há alguns meses, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), desde 1990 que a inflação em produtos alimentares não era tão alta. Os bens alimentares e as bebidas não alcoólicas não pesavam tanto na inflação global (21,5% em Fevereiro) desde Maio de 1985.

A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) já instaurou desde Setembro de 2022 mais de 40 processos-crime pela prática do crime de especulação de preços em hiper e supermercados. Nas operações de fiscalização — levadas a cabo em centenas de supermercados — verificou infracções como o incumprimento de regras relativas a vendas com redução de preço, falhas na calibração das balanças, falta de informação nos rótulos, falta de afixação de preços, incongruência entre preço de prateleira e preço de caixa, entre outras.

Os preços não são a única motivação

Há 15 anos que a artesã Célia Lebreiro não faz compras em supermercados. Vegetariana, refere que, na época, os produtos que consumia eram “mais difíceis de encontrar” em grandes comércios. Hoje, a oferta aumentou, mas Célia não quer regressar: “Escolho a qualidade em vez da quantidade.” Agora, só vai a supermercados para ajudar a mãe nas compras. E refere que lá a mãe acaba quase sempre a gastar mais do que o que estava à espera.

Quando Stefanie Silva se afastou das grandes superfícies, não pensou num boicote. No entanto, considera que a vontade de “ter um consumo mais consciente e procurar ter cada vez menos desperdício” também pode ser vista como uma forma de protesto.

Sempre que consegue, usa o próprio quintal para produzir fruta e legumes. “Procuro privilegiar os nossos próprios alimentos, que sei de onde vêm”, confessa. A alternativa é recorrer a aplicações anti-desperdício como a Too Good To Go ou a cabazes de frescos como o da Fruta Feia.

Ao PÚBLICO, a equipa da app que liga pessoas a restaurantes e lojas que tenham excedentes alimentares confirmou que, em 2022, o número de utilizadores aumentou 42%, comparativamente ao ano anterior. “Cremos que estes resultados são fruto da inflação que vivemos, mas também de uma maior preocupação com a sustentabilidade, o desperdício alimentar e o ambiente”, refere a Too Good To Go, por email, ao P3.

O projecto Fruta Feia, criado para combater o desperdício de fruta e legumes que não são consumidos por terem uma aparência fora do padrão, também confirmou maior procura: “Temos sentido duas coisas: por um lado, um aumento de inscrições; por outro, um maior compromisso por parte dos nossos associados face ao levantamento dos cabazes.”

Em Portugal, há produtores que vendiam a grande superfícies que passaram a preferir vender directamente ao consumidor. Ao PÚBLICO, Firmino Cordeiro, director-geral da Associação de Jovens Agricultores de Portugal (AJAP), referiu que a aproximação entre os produtores e consumidores se deve a um “juntar de vontades”.

“O produtor sentiu que o consumidor estava a optar por outras soluções. E podemos ser mais bem atendidos, enquanto consumidores, se formos à procura de um produtor mais ou menos constante, deste ou daquele tipo de produto, e se calhar a um preço mais simpático”, refere.

E se os preços baixarem?

Ana Machado acha que uma descida nos preços a deixaria “mais à vontade para utilizar supermercados”. O que não significa que abandone as lojas mais pequenas: “Também gosto deste novo hábito de consumir mais no comércio local. Tentaria mantê-lo.”

Já João Mendes não tem intenção de voltar ao consumo de outros tempos: “Não voltarei a colocar lá [nos supermercados] toda a minha despesa. Seria atentar contra os meus interesses e perder qualidade nos produtos que consumo.​”

Rosa Silva, não tem certeza do que fará quando os preços baixarem. De olhos no agora, reconhece a pequena dimensão da sua mudança de consumo. Mas não vê razões para a minimizar: “É uma gota. Mas é a minha gota.”

A contestação contra os supermercados lá fora

Ao longo do último ano, vários supermercados europeus foram alvos de contestação e incentivo a boicotes. Em Fevereiro, vários clientes manifestaram-se contra a cadeia Tesco, na Escócia. Segundo o jornal escocês Press & Journal, a Tesco impediu, através de uma acção em tribunal, a abertura de um Aldi na cidade de Macduff. Os clientes, insatisfeitos, apelaram ao boicote e incentivaram manifestações públicas em frente ao supermercado.

Já o Carrefour, que há mais de 15 anos não opera em Portugal, foi, em 2022, alvo de críticas acesas por parte do movimento palestiniano BDS (Boicotar, Desinvestir, Sancionar) depois de o grupo francês anunciar um acordo com a empresa israelita Electra Consumer Products.

O BDS criou o hashtag #BoycottCarrefour (em português, “boicota o Carrefour”) e acusou o grupo de “lucrar com o apartheid de Israel”: “Israel só consegue manter o regime de colonialismo e apartheid sobre o povo palestiniano através da ajuda de governos, empresas e instituições.”

Desde o início da invasão da Rússia à Ucrânia que a cadeia de supermercados Auchan também tem sido boicotada por se manter activa no mercado russo. Em Fevereiro deste ano, uma reportagem do Le Monde, que referia que havia produtos do Auchan e da Leroy Merlin (ambas do grupo Mulliez) a chegar a militares russos na frente de batalha, levou a uma reinflamação das acusações e dos incentivos ao boicote.

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmytro Kuleba, no Twitter, voltou a reforçar o apelo que tinha feito em 2022: “No ano passado, apelei a um boicote ao Auchan por não se ter retirado da Rússia nem ter parado de financiar crimes de guerra. No entanto, a realidade parece muito pior: o Auchan evoluiu para uma completa arma de agressão da Rússia. Tenciono discutir isto com o meu homólogo francês.”

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