Incolor, insípido e inodoro. O arsénio é um assassino furtivo, naturalmente abundante nas rochas e no solo da Terra. É muito tóxico na sua forma inorgânica, sendo encontrado nos níveis elevados das águas subterrâneas. Há vários países onde se verificam contaminações por arsénico
Começou com pontos espalhados pelo peito e costas das pessoas. Manchas duras invulgares na pele das palmas das mãos e nas solas dos pés. Para alguns, um escurecimento dos dedos dos pés.
Médicos e investigadores começaram a observar pacientes no Bangladesh que apresentavam este tipo de sintomas na década de 1980. Rapidamente se tornou claro o que estavam a ver: sinais clássicos de envenenamento por arsénico.
Numa trágica ironia, a razão acabou por ser atribuída a um programa de saúde pública de enorme sucesso.
Na década de 1970, as crianças do Bangladesh morriam em grande número devido a doenças como a disenteria e a cólera, depois de beberem água suja dos rios, lagos e ribeiros. Em resposta, o governo do Bangladesh, juntamente com agências de ajuda lideradas pela UNICEF, lançou um enorme esforço para obter água mais limpa no subsolo.
Ao longo das duas décadas seguintes, milhões de poços tubulares - tubos estreitos perfurados a profundidades relativamente pequenas - foram enterrados na terra. "No espaço de uma geração, mudaram o comportamento da água potável de toda uma população", disse Seth Frisbie, químico e professor emérito da Universidade de Norwich, que passou décadas a investigar a contaminação por arsénico.
Os números de crianças a morrer diminuíram significativamente. Ainda assim, nos anos 90, tornou-se claro que o projeto tinha falhado a ter em conta um problema enorme e mortal: grande parte das águas subterrâneas continha níveis elevadíssimos de arsénico, um conhecido agente cancerígeno ligado a uma série de outros impactos negativos para a saúde.
Os especialistas em saúde classificaram-no como o "pior envenenamento em massa" de uma população na história - com dezenas de milhões de pessoas afetadas. Embora o governo, a UNICEF e outras agências de ajuda humanitária se tenham esforçado por combater a contaminação, os impactos do envenenamento continuam a ser generalizados. Estima-se que 43.000 pessoas morrem todos os anos devido a doenças relacionadas com o arsénico no Bangladesh, de acordo com um estudo.
Agora, numa reviravolta cruel, a situação pode estar a piorar. Novas evidências sugerem que os impactos da crise climática causada pelo homem - incluindo as inundações e o aumento do nível do mar - estão a alterar a química da água no subsolo e a aumentar ainda mais os níveis de arsénico.
O problema estende-se muito para além do Bangladesh.
Um número crescente de estudos realizados noutros países, incluindo os Estados Unidos, sugere que o aquecimento global pode estar a superalimentar o problema da água contaminada com arsénico em todo o mundo.
"Afeta todos os órgãos do corpo"
O arsénico é naturalmente abundante nas rochas e no solo da Terra. É muito tóxico na sua forma inorgânica, sendo encontrado nos níveis elevados das águas subterrâneas, não só no Bangladesh, mas também em países como a Índia, China, Taiwan, Vietname, Argentina, Chile, México, partes da Europa, Austrália e EUA.
Enquanto as águas superficiais poluídas adoecem rapidamente as pessoas, o arsénico é um assassino furtivo.
É incolor, insípido e inodoro. Não há forma de o detetar sem testes e os seus impactos tendem a surgir ao fim de muitos anos.
A exposição crónica pode revelar-se através da pele endurecida das mãos e dos pés, chamada queratose, do aparecimento de manchas pigmentadas na pele e até da "doença do pé negro", uma doença vascular que pode causar gangrena - tecido morto causado pela falta de fluxo sanguíneo.
Os seus efeitos nocivos continuam no interior do corpo das pessoas, onde aumenta o risco de cancro da pele, do fígado, dos pulmões e da bexiga, bem como de doenças cardíacas e diabetes. O arsénico também tem sido associado à perda da gravidez, a atrasos no desenvolvimento das crianças e a doenças respiratórias.
"Afeta todos os órgãos do corpo", afirma Rubhana Raqib, cientista sénior do Centro Internacional de Investigação sobre Doenças Diarreicas no Bangladesh (ICDDR,B - na sigla original).
Alguns peritos sugeriram que a escala do envenenamento no Bangladesh ultrapassa largamente a de outras catástrofes mais conhecidas causadas pelo homem, como o desastre nuclear de Chernobyl. Mas o número exato de mortos é quase impossível de calcular, em parte devido às dificuldades em desvendar as causas do cancro.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que cerca de 140 milhões de pessoas em pelo menos 70 países têm bebido água contaminada com arsénico a níveis que excedem o limite recomendado de 10 microgramas por litro.
No Bangladesh, onde as diretrizes do governo estão fixadas numas menos restritivas 50 microgramas, acredita-se que milhões de pessoas terão sido afetadas.
Um enorme estudo de análise de poços realizado pelo British Geological Survey, que teve início em 1998 e abrangeu a maior parte do Bangladesh, revelou que 27% dos poços tubulares menos profundos excediam as diretrizes do país, afetando cerca de 35 milhões de pessoas. Cerca de 57 milhões de pessoas foram expostas a níveis que violavam as indicações de 10 microgramas da OMS, de acordo com o estudo - aproximadamente 45% da população.
Frisbie, que passou algum tempo no Bangladesh a produzir mapas da água potável afetada pelo arsénico, disse que o número era evidente.
"Percorri aldeias onde ninguém tinha mais de 30 anos", disse à CNN.
Mesmo as normas mais rigorosas em matéria de arsénico recomendadas pela OMS e adotadas por países como os EUA não proporcionam proteção suficiente, afirmou. "O arsénico é extremamente tóxico. Só porque está a um determinado nível que o governo diz ser seguro... não significa que seja seguro, não significa que as pessoas não vão morrer."
O aquecimento global pode aumentar os riscos
Os riscos são cada vez maiores à medida que os seres humanos continuam a queimar combustíveis fósseis que aquecem o planeta.
Os impactos cada vez mais graves das alterações climáticas podem mudar a química das águas subterrâneas, de acordo com um estudo recente de que Frisbie é coautor.
Isto significa mais problemas para o Bangladesh, que está firmemente na linha da frente da crise climática. Baixa e densamente povoada e com uma longa costa, enfrenta uma imensidão de ameaças, desde a subida do nível do mar até às inundações - todos os anos, cerca de 20% do país fica submerso.
As inundações podem impedir que o oxigénio da atmosfera penetre nas águas subterrâneas, de acordo com a investigação, o que, por sua vez, pode aumentar a libertação de arsénico dos sólidos e sedimentos para a água - um processo designado por "redução".
A subida do nível do mar representa outro desafio, provocando a infiltração de água salgada nas fontes de água subterrâneas. Isto não só faz com que a água tenha um sabor mais salgado, como a presença de sal pode também aumentar as concentrações de arsénico, fazendo com que este se dissolva na água através de um fenómeno chamado "efeito salino".
Estes impactos não se limitam ao Bangladesh, disse Frisbie, "aplicam-se a todo o lado na Terra". Isto inclui os Estados Unidos.
Também foram identificados níveis elevados de arsénico nas águas subterrâneas dos EUA, onde pelo menos 43 milhões de pessoas dependem de poços privados. Ao contrário dos sistemas públicos de água potável, estes poços não são regulados pela Environmental Protection Agency, a agência de proteção ambiental do país.
Os cientistas descobriram que os níveis de arsénico nos poços privados também podem ser afetados pelas alterações climáticas, através de inundações mais graves e da subida do nível do mar, mas também da seca.
Um estudo de investigação à escala nacional realizado pelo serviço geológico dos EUA em 2021 revelou que, durante os períodos de seca, o número de pessoas expostas a níveis inseguros de arsénico aumentou cerca de 54%. Ohio, Michigan, Indiana, Califórnia e Maine foram os estados mais afetados, segundo o USGS (na sigla original).
"Quanto mais tempo uma região estiver em seca, maior será a probabilidade de ter arsénico elevado", disse Melissa Lombard, uma hidróloga investigadora do USGS, coautora do estudo.
Lombard afirmou que as provas sugerem que a seca pode alterar o percurso do fluxo de água para um poço e também mudar os níveis de oxigénio e de pH, afetando a quantidade de arsénico capaz de se dissolver na água.
Mesmo quando as alterações climáticas preparam o terreno para fenómenos meteorológicos extremos mais frequentes e mais graves, os seus impactos nas águas subterrâneas continuam a ser pouco estudados, disse Lombard à CNN. "Muito mais trabalho pode ser feito para compreender o que se está a acontecer e quão grande este problema pode vir a ser”, afirmou.
Um longo legado
Para o Bangladesh, os impactos da contaminação por arsénico continuam e podem agravar-se. Mohammad Robed Amin, da direção-geral dos Serviços de Saúde do Bangladesh, afirmou que o arsénico continua a ser "um grande problema" no país e que têm assistido a um ressurgir do envenenamento por arsénico em zonas já existentes bem como em novas áreas.
No entanto, os peritos dizem que a atenção dada ao problema e as ações para o resolver diminuíram consideravelmente.
"O arsénico é como um assunto morto", afirmou Raqib, do ICDDR,B. As pessoas sabem que ele existe, mas não há ações suficientes para o resolver.
O departamento de Engenharia de Saúde Pública, o organismo responsável pelo abastecimento de água potável do país, não respondeu aos pedidos de comentário.
A UNICEF disse à CNN que, assim que a água contaminada com arsénico foi reconhecida como um risco no início dos anos 90, "tomaram-se medidas imediatas". A organização tem vindo a trabalhar com o governo há mais de 30 anos para testar poços, instalar poços "seguros para o arsénico", criar estações de tratamento e executar programas de educação, disse um porta-voz.
Engenheiros e cientistas têm tentado desenvolver soluções para o Bangladesh e para outros países, desde sistemas de filtragem até técnicas eletroquímicas para remover o arsénico. Mas, em termos destas tecnologias, pelo menos no Bangladesh, "nada funciona", disse Mohammad Yunus, cientista emérito do ICDDR,B.
Os filtros podem acabar por trocar um problema por outro, uma vez que são propensos à contaminação bacteriana e as soluções de mais alta tecnologia podem acabar por ser demasiado caras para as comunidades rurais do Bangladesh, frequentemente muito pobres.
"A solução é construir poços tubulares profundos", disse Yunus. As concentrações de arsénico tendem a ser mais baixas quanto mais fundo for o poço perfurado.
O governo do Bangladesh já não está a instalar poços tubulares pouco profundos, afirmou Yunus, mas muitas pessoas continuam a fazê-lo em privado, uma vez que a perfuração mais profunda é mais dispendiosa e morosa.
Maria Argos, professora associada de epidemiologia na Universidade de Illinois em Chicago, fez parte de um projeto de teste de poços que começou em 2000, examinando milhares de poços no Bangladesh e colocando cartazes em cada um deles para mostrar se os níveis de arsénico eram considerados seguros.
"Nós assistimos a uma redução da exposição das pessoas ao arsénico", disse Argos à CNN. "Mas o ciclo continua porque agora estão a ser instalados novos poços". Quando a equipa voltou a visitar o local, cerca de 15 anos mais tarde, havia mais 14.000 poços não testados a servir a mesma região.
À medida que as alterações climáticas continuam a alimentar condições meteorológicas extremas, haverá "múltiplos caminhos que têm o potencial de alterar a química das águas subterrâneas", disse Argos.
E o arsénico deixa um longo legado.
No Chile, mais de 250.000 pessoas foram expostas a água contaminada com arsénico durante 12 anos, até que foi instalada uma estação de tratamento de águas. Mesmo 40 anos depois, os cientistas descobriram que os riscos de cancro do pulmão e da bexiga continuavam a ser muito elevados na comunidade.
Os poços tubulares só existem há pouco mais de 150 anos, disse Frisbie, e as populações que bebem águas subterrâneas profundas de forma generalizada são um fenómeno relativamente novo. "Todos nós fazemos parte desta experiência", disse.
Conforme os seres humanos continuarem a queimar combustíveis fósseis e a aquecer o mundo, isso pode alterar os parâmetros desta experiência com efeitos desastrosos.
Fonte: CNN
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