Teorias da conspiração criadas pela extrema-direita estão a ser usadas como estratégia política de aliados que apoiam a reeleição do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, na segunda volta das presidenciais, segundo especialistas ouvidos pela Lusa.
"Não temos no Brasil uma militância QAnon como nos Estados Unidos em que os grupos exibem de maneiras mais vocal essa grande teoria conspiratória representada pelo QAnon, mas a gente vê elementos sendo trazidos por atores políticos 'bolsonaristas' para o debate publico", considerou o analista político Guilherme Casarões, integrante do Observatório da Extrema-direita.
Na última semana, o Brasil foi surpreendido por um vídeo gravado na Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia, no qual a pastora evangélica, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e senadora eleita, Damares Alves, afirmava que o inferno se levantou contra Bolsonaro porque ele teria coibido um esquema de tráfico e abuso de crianças na Ilha de Marajó, no norte do país.
"Bolsonaro tem uma compreensão espiritual que vocês não têm ideia. Fomos para a Ilha do Marajó e descobrimos que nossas crianças estavam sendo traficadas por lá, e que essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre na hora do sexo anal", disse.
"Imagens de crianças nossas, brasileiras, de quatro anos, três anos, que quando cruzam as fronteiras, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral", acrescentou no culto em Goiânia que atuou numa ação de campanha a favor de Bolsonaro, onde participou também a primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
As declarações chocaram o país e mobilizaram as autoridades judiciais, que divulgaram um comunicado, dizendo desconhecer a existência destes crimes e pedindo esclarecimentos.
"O Ministério Público Federal (MPF) atuou, de 2006 a 2015, em três inquéritos civis e um inquérito policial instaurados a partir de denúncias sobre supostos casos de tráfico internacional de crianças que teriam ocorrido desde 1992 no arquipélago do Marajó, no Pará. Nenhuma das denúncias mencionou nada semelhante às torturas citadas pela ex-ministra Damares Alves no último dia 8", diz o órgão público brasileiro.
O MPF pediu a Damares Alves e ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que apresentasse provas sobre a existência destes casos de abuso e as ações que o foram realizadas para impedi-los e ainda aguarda resposta.
O relato de Damares é muito semelhante a um conto de ficção que se tornou uma teoria da conspiração em circulação desde 2010, conhecida como "Lolitas escravas brinquedos" sobre abusos contra crianças alegadamente cometidos num país do leste europeu, publicado no 4chan.
O 4chan é fórum de discussão que se baseia na publicação de imagens e texto, geralmente de forma anónima que ganhou mais notoriedade depois que um utilizador anónimo (QAnon) ter passado a fazer publicações com informações falsas alegando ter acesso a dados de agências de segurança dos Estados Unidos sobre um grupo liderado por uma elite corrupta formada por pedófilos satanistas que sequestravam e sacrificavam crianças, criando um movimento que tem muitos adeptos no Partido Republicano.
No Brasil, o QAnon adaptou a narrativa conspiratória local e os seus disseminadores, que dizem defender valores cristãos e conservadores, usam as redes sociais para espalhar mentiras contra pessoas que fazem críticas ao Governo liderado por Bolsonaro.
"Ela [Damares Alves] que criar pânico, ela precisa criar um estado de pânico (...) Eu diria que ela é a grande liderança de teorias conspiratórias no Brasil, não só de QAnon", salientou Adriana Dias, doutorada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estuda neonazismo e grupos que propagam teorias conspiratórias da extrema-direita.
"A história que a Damares conta de Marajó está num site neonazista chamado 4chan. É uma história que está no 4chan. Agora, porquê [a senadora citou este conteúdo]? Porque nos fóruns neonazistas existe muito incentivo à pedofilia. (...) Não é estranho que a ministra que deveria proteger as crianças esteja usando um site que ensina pedófilos a estuprá-las", disparou Adriana Dias.
Já Casarões reforçou que o Brasil ainda não é um baluarte QAnon, mas agentes políticos como Damares Alves, as deputadas Carla Zambelli, Bia Kisses e Eduardo Bolsonaro, deputado e filho do chefe de Estado brasileiro, têm feito uma adaptação de pontos específicos destas narrativas.
"Autorizar o emprego do cargo eletivo para a disseminação de teorias conspiratórias em geral, difamatórias e que têm um alvo muito específico ou um conjunto de alvos muito específico tem impactos muito importantes no jogo político. Permitir que isso se dissemine no mundo político terá um impacto eleitoral", ponderou Casarões.
"No caso da Damares Alves, em particular, que é uma líder evangélica, vinculada aos grupos evangélicos organizados como a Igreja Batista da Lagoinha isto também gera um outro problema que é disseminar teorias conspiratórias que vão chegar fatalmente à crescente população evangélica", completou.
Casarões considerou que, na eleição Presidencial, o impacto das teorias QAnon poderá ser mais grave porque os conceitos conspiratórias moldam a maneira como muitos eleitores veem o mundo.
"Nesse caso da eleição de 2022, percebe-se que muitas dessas teorias conspiratórias têm muito claramente um alvo que são o PT [Partido dos Trabalhadores] e o ex-presidente Lula da Silva", concluiu referindo-se ao oponente de Bolsonaro na segunda volta da eleição presidencial que acontecerá em 30 de outubro.
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