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Como é que podemos explicar a alguém que vive a maior tempo na cidade e tem pouco contacto com o mundo rural o que é a agrofloresta?
A agrofloresta é essencialmente a ideia de coabitar com o sistema natural – ou ecossistemas – que nos criaram e estão à nossa volta e dos quais nós ainda hoje dependemos integralmente. Somos completamente dependentes dos recursos que eles produzem. E nós não sabemos de forma alguma, por muita capacidade e engenho que tenhamos, supri-los de outra forma sem ser através do sistema natural.
É muito fácil percebermos o modelo da agricultura, que passa essencialmente por termos uma relação com o que está à nossa volta, eliminando o sistema natural, um conjunto de elementos relacionados entre si e uma capacidade de auto-regeneração única. No fundo aprendemos a canalizar a energia deste sistema apenas para poucos elementos, que obviamente são interessantes para nós, sejam eles cereais, eucaliptos ou olivais. Quando o espaço é muito grande e o número de utilizadores é pequeno, esta fórmula até pode ser bastante razoável, por que se as pessoas destruírem um bocadinho de natureza e quando voltarem ao mesmo sítio já tudo tiver sido regenerado ecologicamente, não há qualquer problema. O problema é que esta modalidade acabou por arrombar o sistema, que deixou de ser capaz de produzir a energia que o faz funcionar.
E a Agrofloresta pode esta inverter essa realidade?
A agrofloresta é uma forma diferente de nos inserirmos na natureza, que já foi desenvolvida em Portugal na Idade Média, com aquele sistema que nos orgulhamos tanto, chamado montado. Este não é mais do que uma evidência, como que dizendo “vamos lá reagir, depois de termos destruído a natureza e os ecossistemas todos”. Aconteceu uma vez no Neolítico, outra, muito mais forte, a seguir ao Império Romano, e uma terceira depois de todo o período dos visigodos, seguido pelos árabes. Às tantas houve alguém que bateu com a mão na mesa e disse: e se nós tentássemos viver com o sistema?
O montado, por exemplo, é um sistema muito simplificado e muito domesticado, adaptado às nossas necessidades, mas é um sistema. A agrofloresta não é portanto mais do que a ideia de viver com um sistema natural, compreendendo-o e sendo nós também parte dele. Diria mesmo que a agrofloresta é hoje uma das expressões mais profundas da ética da agroecologia.
Em que sentido?
Por se opor a uma ética antropocentrada, muito maioritária no pensamento ocidental, que nos diz que não somos natureza, porque a natureza é violenta e selvagem e nós, por oposição, afastamo-nos dela, numa tentativa de nos divinizar. A natureza existe para a ordenarmos e para podermos usufruir dela. A ética da agroecologia é diferente, pois pressupõe umas determinadas capacidades para o homem, que os outros seres não têm, e isso dá-nos não só uma enorme responsabilidade, como nos coloca ao nível dos outros elementos da natureza, como parte dessa mesma natureza. Essa evidência é personalizada pela a árvore, o elemento vegetal que dura mais e é o motor deste sistema. São estes seres que, de forma bastante eficiente, conseguem fazer o milagre de transformar a luz do sol em matéria orgânica. Por isso, todos os outros reinos – o animal, os fungos, as bactérias, os protozoários – são complementares à árvore e ao reino vegetal. Um sistema que não tem este elemento central não é um sistema.
Fala-se muito do solo vivo e da sua importância para a humanidade, mas continuamos sem perceber que não há solo sem árvore. Quem alimenta o solo são as árvores e o sol funciona como uma bateria, pensada neste sistema para ser carregada através de um painel fotovoltaico que se chama biodiversidade e é formado por todos estes seres interrelacionados entre si.
E agricultura tradicional não permite o funcionamento desse regime?
Não porque inventámos uma outra forma de alimentar essa bateria, partindo o painel solar da biodiversidade, através de meios mecânicos e químicos, para a podermos usar de uma forma especulativa, muito contrária aos interesses das novas gerações.
É por isso que a agroecologia é uma ética e não um mero conjunto de técnicas. Mas é também uma abordagem prática, porque implica que aprendamos a viver com o sistema, e quem vive com o sistema é recolector, não é produtor.
Trata-se talvez da expressão mais atual dessa visão sistémica de não arrombar o sistema, mas sim perpetuá-lo, adaptando-o às nossas necessidades, mas sendo o homem, também um elemento ao seu serviço.
Há aqui duas ideias opostas, uma é que a ideia de domínio sobre a natureza, em oposto à agroecologia, é sinónimo de abundância. E depois há esta nova abordagem aos seres vivos e à importância que têm as plantas silvestres e os animais selvagens terão no sistema, de modo a garantir essa mesma abundância a longo prazo.
O mais possível. Na perspectiva antropocentrada o homem é o centro e só ele conta. Há uma ideia muito simples, que é a de imaginarmos que a dado momento chega um ser mais capacitado, com uma atitude perante a humanidade semelhante à que temos com a maioria dos nossos congéneres do reino animal. É um exercício simples e que pouca gente faz.
Acima de tudo é importante perceber a nossa iliteracia ecológica. Ao contrário do que muitas vezes se afirma, a ecologia não é uma mera ideologia de esquerda, mas sim uma ciência, criada precisamente para estudar o sistema que nos criou. E ao não reconhecermos isso ou ao não partilharmos esse conhecimento, assumimos uma posição apenas arrogante. E grande parte destas questões têm precisamente a ver com esse desconhecimento profundo da forma como o nosso sistema de vida e o planeta funcionam.
E como funciona afinal esse sistema?
Todos os ecossistemas são cíclicos, e todos eles vão acabar num estádio que designamos de deserto. O deserto é praticamente só minério, sem vida, porque não há matéria orgânica no solo. Os ecossistemas de deserto evoluem para um outro extremo que é o clímax, mas passando por uma fase intermédia que se chama acumulação. O clímax não significa maior quantidade, porque muitas vezes na fase de acumulação até há maior libertação de recursos, mas é seguramente a fase da eficiência. É importante percebermos que a atitude antropocentrada, ligada à agricultura industrial de monocultura, é a principal responsável pela delapidação destes recursos. E isto são dados científicos comprováveis, pois a parte terrestre do nosso planeta tem mais de 80% em condições de deserto, enquanto há doze mil anos, no Holoceno, tínhamos o quadro inverso, com 80% do planeta em estado de clímax.
Como é o caso do montado, que já referiu como exemplo desse conceito…
O montado é completamente uma agrofloresta, hoje muito querida por todas as pessoas que gostam deste tipo de conceitos, mas é também um símbolo. Foi criado na Idade Média e entretanto foi sendo aperfeiçoado até atingir esta última versão. é o que se chama um modelo de “sucessão dinâmica”, que serve não só para instalar o sistema e viver com o sistema, como também pretende e permite transformar rapidamente desertos em clímax. O sobreiro é um ser de clímax, que precisa de um sistema muito complexo, assim como o humano, para poder viver. E nós não percebemos estes conceitos básicos, assim como também não percebemos que, no Neolítico, entrámos pelo interior de Portugal e matámos tudo aquilo que se chama a megafauna, ou seja todos os animais maiores que nós, sem percebermos que estávamos a suprir uma ferramenta absolutamente essencial dos ecossistemas.
É curioso perceber que os miúdos conhecem os dinossauros todos mas não sabem os nomes dos animais que aqui viviam há quinhentos anos. Sem o sabermos, roubámos instrumentos fundamentais aos ecossistemas. Manipulámos os animais e os outros seres, vegetais, em função das nossas necessidades. Uma vaca, hoje, não é um instrumento num ecossistema, e cada vez que a domesticamos mais, mais lhe retiramos as capacidades de promoverem serviços no ecossistema.
Referiu que dois terços de Portugal são mato, mas que podem ser úteis. O que é possível fazer nessa parte do território?
Antes devemos perguntar-nos porque é que esses dois terços são mato, há quanto tempo o são e o que eram antes. A consequência desta abordagem não sistémica, de assaltar a natureza e de fazer agricultura é o mato, porque o mato é o deserto.
As plantas e os seres que nós vemos no mato são seres pioneiros, que estão a recuperar aquilo que nós estragámos. O drama disto é que em função das condições de clima e de sol cada uma destas etapas pode levar sete a setenta mil anos, e nas nossas condições de Mediterrâneo são mais para setenta do que para sete. Se apenas nos pusermos quietinhos a olhar para o mato à espera que regenere, vai demorar cinquenta mil anos. Não temos tempo para isso.
Aliás, a ideia que o homem só é capaz de destruir, não é capaz de regenerar activamente, não faz sentido. Não há nenhuma razão para que assim seja, por muito que haja algumas correntes de pensamento que gostem e utilizem essa ideia da origem maléfica da nossa espécie. Pelo contrário, somos tão capazes de destruir como de fazer coisas absolutamente maravilhosas. Esses dois terços já foram terras férteis, com florestas e bosques. Porque é que não comemos, por exemplo, plantas e frutos silvestres? A grande razão tem a ver com a agricultura. A agricultura do Neolítico levou à existência de mais humanos no Neolítico final. Mas esse entusiamo levou-nos à razia do ecossistema da Península Ibérica. O que se seguiu foram mais de dois mil anos de caos, de lei do mais forte, que apenas terminou com a chegada dos romanos, que convenceram os povos peninsulares que a comida do mato e do bosque, desse supermercado aberto que não podia ser taxado, não era boa. Fomos convencidos que a única comida boa era a domesticada e nunca mais se comeram bolotas nem produtos silvestres. Ou seja, virámos costas a uma diversidade enorme.
Tendo em conta o modelo económico que temos, como é que podemos encarar o consumo de bolota e de outros frutos silvestres no futuro?
Em primeiro lugar é preciso perceber que ninguém come trigo à dentada, na espiga. O trigo é um alimento extraordinário depois de transformado e processado em farinhas e noutro tipo de alimentos, portanto com a bolota há que se fazer o mesmo, aprender a processá-la e a transformá-la com utilidade prática. A questão da bolota é muito simples: no Mediterrâneo, uma área com carvalhos, por exemplo azinheiras e sobreiros, produz, mesmo com uma densidade baixa de árvores, mais quantidade de alimento do que qualquer cereal e sem gastar energia nas mobilizações de solo, sem provocar erosão, sem adubos, sem barragens e sem tubos. A bolota é tão interessante para a alimentação humana como qualquer cereal.
E a ideia de que se tem estar sempre a limpar, que sentido faz, tendo em conta que se devia aproveitar aquela biomassa?
Numa abordagem de monocultura, a limpeza não é mais do que retirar elementos do sistema para o poder controlar melhor. Normalmente aquilo a que chamamos limpezas são elementos do sistema que vão alimentar o solo. Quando comecei a fazer agricultura nos Açores, os meus colegas começaram a perguntar algo muito interessante, sobre a ração que eu tinha para o solo naquele ano, porque ali a noção que o solo, se não for alimentado – e não é com adubos – vai acabar.
Ou seja, para alimentar o mundo não é preciso recorrer aos transgénicos.
De forma alguma. Para alimentar o mundo é preciso, em primeiro lugar, percebermos o que é que comemos. Essa variável é fundamental. Outra questão é percebermos que somos a única espécie que não atende aos recursos quando pensa em multiplicar-se. Isto vem da tal divinação do ser humano. Se calhar temos de ter a consciência que com o planeta em 20% de clímax e 80% de deserto, se calhar não podemos ser tantos quantos gostaríamos de ser.
A não ser que se reverta...
E que nós caminhemos para a abundância. Mas mesmo assim temos de ter uma bitola para percebermos conscientemente e com métodos libertários, que nenhum ser neste planeta atua como nós. Não há nenhuma espécie que não atenda à forma como se reproduz em relação aos recursos que existem.
Se não houver recursos, vamos sofrer. Sendo que a questão fundamental passa pelo relacionamento entre nós próprios. Como diz o Papa Francisco é uma questão social. Nós nunca vamos reverter esta posição de domínio perante a natureza se não a invertermos entre nós próprios. Não somos iguais a um mosquito, porque temos funções diferentes no ecossistema, mas como São Francisco de Assis tão bem nos mostrou, também não somos nem mais nem menos que um mosquito, pelo que não podemos ter a arrogância de matar milhões de mosquitos apenas porque interessa fazer negócio.
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