Passeio de Natal
Por razões que não interessam para esta história há uns dias fui a Lisboa e passeei pela baixa pombalina, o que já não fazia há alguns anos, não obstante ser lisboeta, nascido e criado quase no centro da cidade, até aos meus 25 anos.
As ruas enfeitadas, a música, a azáfama das gentes, enfim… o habitual nestas épocas natalícias. E o habitual eram também os numerosos sem abrigo, sentados ou deitados, recorrendo à caridade pública. Apressadas, as pessoas nem neles reparavam… ou fingiam que não reparavam. A diferença entre estes homens e mulheres sem casa, vivendo na rua, é que diferentemente de outros tempos, tinham junto de si pequenos “cartazes” de papelão onde se lia, EM INGLÊS, mensagens informando que eram sem abrigo e que pediam ajuda para comer. Um desses “cartazes” estava mesmo escrito em inglês e francês.
Houve no entanto uma situação que me fez pensar e suspirar de impotência.
Na Rua de São José, uma rua paralela à Avenida da Liberdade, aproveitando um recanto provocado pela confluência de dois prédios, via-se um enorme chapéu de chuva, branco, imaculadamente branco, que escondia uma, talvez duas, pessoas que, tudo apontava nesse sentido, ali tinham pernoitado e por ali ainda se mantinham. Estava frio. Muito frio. Junto deles, mas sem os ver porque estavam encobertos pelo chapéu, um jovem com uma farda de uma empresa de segurança, pedia-lhes, por favor, para abandonarem o local. Dizia o segurança que compreendia a situação deles, mas que tinha ordens para não permitir que eles ali continuassem, A forma como se dirigia àquelas pessoas, invisíveis por detrás do chapéu, era de alguém que se sentia incomodado, revoltado mesmo, por ter de cumprir aquela ordem.
Não sei como tudo acabou porque me afastei receoso das consequências do que de uma eventual intervenção da minha parte pudesse provocar. Eram onze horas da manhã e estava frio, muito frio. As pessoas continuavam a circular alheias ao que as rodeava. Com frio. Com muito frio. Faltavam poucos dias para o Natal.
Natal: um dia diferente?
Véspera de natal. Véspera do dia em que (para os cristãos) Jesus (filho de deus feito homem) nasceu. No entanto, segundo algumas pesquisas, Jesus não terá nascido a 25 de Dezembro. Mas, na realidade isso não importa. Também não importa se Jesus era (ou é) filho de deus. O importante é a filosofia da mensagem que vem sendo divulgada em seu nome.
Uma mensagem importantíssima que instituiu novos conceitos de vida. Contudo, (pergunto) estarão esses conceitos a ser integrados na sociedade em que vivemos e, muito particularmente, assumidos intrinsecamente pelos que se afirmam cristãos? Ou será apenas um faz de conta?
Nas redes sociais são muitos os que aplaudem as palavras caritativas de importantes figuras religiosas, os que condenam a existência da pobreza, os que se manifestam contra os rendimentos absurdamente elevados em comparação com a miséria de remunerações, mas não se conhece por parte destes, por pequena que seja, qualquer ACÇÃO que promova uma mudança social que extinga tanto quanto possível os factos que veem condenando.
Infelizmente, enquanto cada um de nós não contribuir para que a sociedade mude na perspectiva da filosofia que nos vem sendo transmitida há mais de 2000 anos, o que escrevi e que ainda aqui vou continuar a escrever, continua actual, porque representa a postura de uma parte representativa da sociedade que valoriza mais a forma do que o conteúdo, mais o TER do que o SER.
O Natal é que passou
No dia 24 de Dezembro, logo à noite, estarei sentado a uma pequena mesa com a minha pequena família. Uma mesa farta em que não faltará o bacalhau da Noruega (espero que ainda sem fosfatos), as batatas, as couves, o ovo (devidamente carimbado), tudo regado com o bom azeite português (talvez ainda não adulterado) que faz parte da tão falada dieta mediterrânica, além, claro, de muitos e muitos doces (sem edulcorantes). Ah!, já me esquecia do bom vinho português (sem sulfitos, claro).
O meu neto, já um jovem homem, possivelmente estará desejoso que o jantar termine rapidamente para correr para o smartphone mesmo ainda antes de abrir os presentes que se acumularão sob a árvore de natal, uma imitação de um pinheiro natural, que alguém da família foi buscar à arrecadação e encheu de luzes e bolas, vermelhas, e que no passado chamávamos encarnadas por causa das conotações políticas.
Se a noite estiver fria teremos o aquecimento ligado e, muito importante, a televisão sintonizada num qualquer programa apropriado. Talvez passe uma reportagem sobre os “sem-abrigo”, onde se vêm algumas dezenas de voluntários a oferecerem uma sopa quente, tudo em directo, o que nos fará sentir momentaneamente desconfortáveis, mas só momentaneamente, porque logo de seguida somos visualmente brindados com ceias de natal, verdadeiros deslumbramentos gastronómicos, servidas numas quaisquer salas decoradas a primor, para satisfação de quem as pode pagar.
Por essa altura já os embrulhos que aguardavam sob a árvore estarão desfeitos e cada um regozijar-se-á com aquele presente que lhe trouxe o pai natal (no meu tempo era o menino jesus).
Nestes jantares tradicionais não me parece que haja tempo para pensar nos mais de dois milhões de portugueses e nos muitos e muitos milhões que noutras partes deste maltratado planeta não têm uma alimentação mínima, uma habitação condigna, um acesso a cuidados de saúde elementares, uma oferta educativa quanto baste, porque, simplesmente porque, tiveram o azar de ter nascido na parte errada do mundo e da sociedade.
E haverá tempo para a solidariedade? Sabemos o que é ser-se solidário? Sabemos?
Há muitos, mesmo há muitos anos, foi atribuída a um preso a autoria deste poema, que pode reflectir o sentimento que avassala muitos dos que sofrem com as guerras, com a miséria, com as injustiças:
É Natal. E pr’a meu mal,
No lugar em que estou,
Eu não passei o Natal.
O Natal é que passou…
Para todos, mesmo com o natal a passar, os meus votos de Boas Festas.
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