"Seria ótimo vermos o impacto climático dos Mundiais da FIFA reduzirem-se drasticamente. Mas as proclamações que ouvimos sobre a neutralidade carbónica simplesmente não são credíveis", afirmou o autor do relatório para o Carbon Market Watch que estudou a pegada ambiental da competição e concluiu que "apesar da falta de transparência, as provas indicam que as emissões deste Mundial serão consideravelmente maiores do que os organizadores preveem, e é pouco provável que os créditos de carbono que têm comprado para compensar essas emissões tenham um impacto suficientemente positivo no clima".
Em relação aos números avançados pela organização do Mundial, o Carbon Market Watch diz que subestimam as emissões associadas à construção dos estádios. E quanto aos créditos de carbono adquiridos, a ONG questiona a independência do esquema de certificação dos parâmetros que foram criados especialmente para a competição. "Tais créditos de baixa qualidade não farão o Campeonato do Mundo "neutro em carbono", avisam.
Nas contas oficiais, construir um estádio temporário implica o dobro de emissões de construir seis estádios permanentes
Diz a organização do evento que ele irá emitir 3.6 megatoneladas de CO2-equivalente (MtCO2e), a medida internacional que expressa a quantidade de gases de efeito estufa em termos equivalentes da quantidade de dióxido de carbono. O problema começa logo pela contabilização das emissões ligadas à construção dos sete novos estádios, que apenas são tidas em conta dividindo os dias em que são utilizados na competição pelo total do tempo de vida previsto para essas infraestruturas.
Ora, alega o Carbon Market Watch, isso é enganador tendo em conta que foram costruídos de propósito para o Mundial e não se prevê que tenham muito uso no futuro tantos estádios num território tão pequeno e cuja capital e única grande cidade, Doha, tinha apenas um grande estádio antes de ser atribuído ao Qatar o estatuto de anfitrião do Mundial 2022. Da mesma forma, são excluídas das contas dos organizadores as emissões ligadas à manutenção e uso futuro dos estádios. Contas feitas, em vez das 0.2 MtCO2e estimadas, que representariam apenas 5,5% do total de emissões do Mundial de Futebol, o valor real das emissões seria multiplicado por oito: 1.6 MtCO2e.
A forma da contabilização das emissões para cada estádio também é contestada. Um deles, o estádio 974, é suposto ser temporário. Mas nas contas da organização, as emissões alocadas à sua construção são mais do dobro dos restantes seis novos estádios, dado que apenas contam na totalidade a construção das cadeiras que serão removidas no final da competição. As emissões da construção do estádio propriamente dito são divididas de forma a apenas ter em conta uma parcela de 70 dias de utilização deste ano num total de 60 anos de tempo previsto de utilização total.
E sobra ainda a questão de saber qual o futuro destes estádios, com apenas três a serem destinados a equipas que jogam em recintos com capacidade bem menor e outro dedicado à seleção nacional feminina. A experiência anterior mostra que a viabilidade financeira destes recintos é duvidosa quando não servem para os grandes clubes, como aconteceu na Rússia. Ou no Mundial anterior, no Brasil, onde há estádios que são raramente usados e um deles está a ser usado em parte para o estacionamento para autocarros. Na África do Sul, que recebeu o Mundial de 2010, a subutilização destas infraestruturas também continua a pesar nas contas públicas.
Compensação de emissões sem independência nem integridade
O mecanismo de criação das compensações foi criado com o contributo dos organizadores do Mundial, que estabeleceram novos padrões de créditos de carbono com o Global Carbon Council. "Enquanto era suposto entregar pelo menos 1.8 milhões de créditos para compensar as emissões do Mundial, a poucos meses do evento apenas tem dois projetos registados e emitiu pouco mais de 130 mil créditos", acusa a ONG. Ainda mais longe está a meta de 3.6 milhões de créditos necessários (número provavelmente subestimado, apontam) Por outro lado, o Carbon Market Watch não vê como esta competição se compagina com o objetivo anunciado pela FIFA no ano passado de neutralidade carbónica em 2040. "Poucos detalhes estão disponíveis e informação básica como a cobertura dessa meta, os anos de referência e o inventário de gases de efeito estufa não parecem estar publicados".
Quanto aos dois projetos registados, trata-se de projetos de energias renováveis ligadas à rede na Turquia, que iriam ser feitos independentemente da venda de créditos de carbono pois o seu custo baixou muito nos últimos anos e tornou-se competitivo em boa parte do mundo. Além disso, acrescenta o relatório, "a grande maioria deste tipo de projetos já não pode ser registada ao abrigo dos dois principais padrões de crédito de carbono - Verra e Gold Standard - devido a esta preocupação quanto à sua falta de integridade". A maioria dos 238 projetos que aguardam registo são igualmente de energias renováveis ligadas à rede e não seriam elegíveis face aos principais padrões existentes.
Por outro lado, o evidente conflito de interesses entre os organizadores do evento e o emissor dos créditos, uma firma de investimento propriedade do fundo soberano do Qatar, faz desconfiar sobre a independência e eficácia deste Global Carbon Council. A mesma organização - Gulf Organisation for Research and Development - é responsável pela fiscalização e certificação da performance de sustentabilidade de todos os estádios deste Mundial de Futebol.
Em resumo, a ONG conclui que os anúncios dos organizadores são correspondem à realidade e que isso "induz em erro os jogadores, adeptos, patrocinadores e o público a acreditarem que a sua (potencial) participação no evento se realizará sem custos para o clima".
Organização dos Mundiais deve ser repensada, defende o relatório
No capítulo das recomendações, o Carbon Market Watch defende que a FIFA deve fornecer com transparência os dados sobre as emissões diretas e indiretas dos seus eventos e que as emissões de cada Mundial de Futebol devem ser comparáveis com os Mundiais anteriores e seguintes. Por outro lado, os governos devem proibir a prática de "greenwashing", impedindo que organizadores de eventos proclamem a sua neutralidade carbónica quando há provas mais do que suficientes do contrário.
O mesmo vale para a FIFA, que continua a promover o Mundial do Qatar como "amigo do ambiente" quando está longe de ser o caso. O organismo é também desafiado a publicar um plano claro de redução de emissões e a sua estratégia para a neutralidade carbónica anunciada para 2040, mas também a repensar a forma como os Campeonatos Mundiais são organizados, distribuindo os locais do evento para que os estádios estejam mais próximos dos países que ali vão jogar, evitando a construção de novos estádios. Ou, em alternativa, criar uma sede permanente dos Mundiais, um território neutral à semelhança das Nações Unidas.
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