Durante a pandemia surgiu um novo multimilionário a cada 30 horas. Este ano, a cada 33 horas, houve um milhão de pessoas a passar à situação de risco de pobreza extrema. O relatório da Oxfam defende a taxação da riqueza dos multimilionários dos setores que mais lucraram com a pandemia e a atual crise energética e alimentar.
Esta segunda-feira a Oxfam publicou um relatório intitulado “Lucrar com a dor” onde avança dados sobre o nível de riqueza dos multimilionários dos setores que mais lucraram com a pandemia e agora com o aumento dos preços da energia e do setor alimentar.
De acordo com dados da Forbes, desde 2020 existem mais 573 multimilionários, perfazendo atualmente um total de 2.668. Se em 2000 a sua riqueza correspondia a 4,4% do PIB global, agora representa 13,9%. Os 10 homens mais ricos detêm uma riqueza maior do que os 40% da população mundial mais pobre e os 20 mais ricos totalizam uma fortuna maior do que o PIB da África subsariana.
Ao mesmo tempo, com a combinação das várias crises desde 2020, este ano mais de 263 milhões de pessoas podem experienciar um nível de pobreza extrema. A Oxfam faz um cálculo interessante: isto quer dizer que a cada 33 horas mais 1 milhão de pessoas está em risco de pobreza e, em média, desde 2020 que um novo multimilionário surge a cada 30 horas. Esta é provavelmente a imagem mais clara que o relatório nos dá: ao mesmo tempo que um novo multimilionário ascende, um milhão de pessoas confronta-se com pobreza extrema.
As várias faces da desigualdade
Para além dos diferentes níveis de acumulação da riqueza, a Oxfam recolhe dados para descrever a desigualdade enquanto fenómeno multidimensional.
Um aspeto gritante é a discrepância entre níveis de rendimento - por exemplo, em média, levaria a uma pessoa nos 50% mais pobres 112 anos a receber o que alguém nos 1% mais ricos aufere num ano. Com a pandemia, este fosso agravou-se: o rendimento de 99% da população mundial decresceu, equivalendo a 125 milhões de postos de trabalho a tempo inteiro perdidos.
Depois, a pobreza e as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho são particularmente mais graves para as mulheres e os grupos racializados sofreram mais com a pandemia. Em 2020, era 1,4 vezes mais provável uma mulher perder o seu emprego e estaria três vezes mais incumbida de trabalho não pago. Já em 2021, comparando com 2019, enquanto havia menos 13 milhões de mulheres empregadas, o emprego masculino tinha recuperado para os níveis anteriores.
As condições de saúde em si são outro fator de desigualdade. A esperança de vida é cerca de 16 anos maior em países de elevado rendimento do que naqueles de baixo rendimento e, como resultado da pandemia, morreram quatro vezes mais pessoas no segundo grupo.
Por fim, a Oxfam salienta que a pandemia reverteu a tendência de convergência entre os dois grupos de países e que, para os países de baixo rendimento, o peso da dívida externa impede os governos de investir em serviços públicos de saúde.
Multinacionais lucraram com a pandemia
Os últimos dois anos, primeiro pelo surto da Covid-19 e depois pelo aumento dos preços da energia e do setor alimentar, reforçado com a guerra na Ucrânia, mostraram-se particularmente proveitosos para quatro setores: farmacêutico, alimentar, energético e tecnológico. Todos eles são áreas caracterizadas por uma grande concentração de mercado, funcionando por oligopólios.
O setor alimentar e o agronegócio, ao mesmo tempo que escala o receio de uma crise alimentar global, aumentou a sua riqueza em 382 mil milhões de dólares nos últimos dois anos, isto é, em 45%. Neste período apareceram 62 novos multimilionários e duas famílias merecem particular destaque - Cargill, detentora da gigante agroalimentar homónima, e os Walton, donos da cadeia de supermercados Wallmart. Os dois grupos registaram lucros avultados e distribuíram grande parte destes em dividendos aos seus acionistas.
Os lucros marginais das grandes petrolíferas quase duplicaram durante a pandemia enquanto se estima que o custo da energia deve aumentar em 50% em 2022. Nos últimos dois anos, a riqueza dos multimilionários no setor do petróleo, gás e carvão aumentou em 53,3 mil milhões de dólares, isto é 24%. Só a BP, Shell, TotalEnergies, Exxon e Chevron, cinco das maiores energéticas, estão a obter, juntas, lucros de 2.600 dólares a cada segundo.
Com a pandemia, as empresas farmacêuticas lucraram extensivamente com o desenvolvimento de vacinas, tratamentos, testes e máscaras, com especial destaque para os grupos Moderna e Pfizer. 40 novos multimilionários surgiram neste setor e as duas gigantes, apenas com a vacina, estão a lucrar 1.000 dólares por segundo. A Oxfam nota que estes lucros são largamente explicados por as duas farmacêuticas cobrarem aos governos até 24 vezes mais do que o custo potencial da produção genérica e por o desenvolvimento das vacinas ter sido amplamente apoiado por investimentos públicos. Mais, o setor farmacêutico é conhecido por recorrer a práticas fiscais agressivas e usufruir de paraísos fiscais.
Quanto ao setor tecnológico, parece ser o mais lucrativo e com maior grau de concentração. Cinco dos 21 maiores grupos económicos são gigantes tecnológicos: Apple, Microsoft, Tesla, Amazon e Alphabet. Estas juntas lucraram no ano passado 271 mil milhões de dólares, quase o dobro do que registaram em 2019.
Tributação de lucros extraordinários e da riqueza como solução
A Oxfam sugere três medidas para responder a estes níveis de desigualdade. Primeiro, um imposto sobre os lucros extraordinários dos maiores grupos multinacionais, em linha com as recomendações da Comissão Europeia, da OCDE e do FMI de tributar os lucros excecionais das energéticas para estancar o aumento galopante dos preços da energia.
A Oxfam propõe um imposto de 90% sobre lucros extraordinários, de forma temporária e transversal a todos os setores. Em setembro de 2020, estimava que um imposto deste género sobre as 32 empresas mais lucrativas durante a pandemia teria gerado uma receita de 104 mil milhões de dólares.
Segundo, impostos de solidariedade pontuais de 99% sobre a riqueza dos novos multimilionários para ajudar a população a enfrentar o aumento do custo de vida. Este tipo de impostos de solidariedade já foram reconhecidos pela OCDE e pelo FMI como opções económicas a considerar. A Argentina, por exemplo, adotou este tipo de medida como forma de financiamento no início da pandemia.
Terceiro, e por último, um imposto permanente sobre a riqueza como forma de equilibrar o tratamento fiscal do trabalho face ao capital. A Oxfam sugere que um imposto progressivo sobre riqueza pessoal de 2% a partir de 5 milhões de dólares, 3% acima de 50 milhões e 5% acima de mil milhões, geraria 2,52 biliões de dólares mundialmente. Este nível de receita tiraria 2,3 mil milhões da pobreza, cobriria a produção de vacinas de Covid-19 mundialmente e garantiria proteção social para a população dos países de baixo e médio-baixo rendimento.
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