Por Paulo Côrte-Real 23/08/17
1. O facto de eu ser homem não faz parte da minha vida privada. O facto de eu ser "branco" não faz parte da minha vida privada. O facto de eu ser gay não faz parte da minha vida privada. Tudo isso faz parte da minha identidade, de quem eu sou. Das características que me dão ou me tiram poder em termos sociais.
O que faz parte da minha vida privada são as relações que tenho - e, sim, eventualmente o que gosto ou não gosto no sexo (que posso ou não ter, sendo gay ou hetero).
Tenho o direito de manter a minha vida privada privada. O direito, não o dever. O direito.
A minha identidade não faz parte da minha vida privada.
Toda a gente sabe que eu sou gay. Mas só as pessoas com quem escolho partilhar a minha vida privada é que a conhecem.
2. As pessoas heterossexuais não precisam de apregoar a sua heterossexualidade porque o pressuposto generalizado continua a ser o de que as pessoas são heterossexuais. Quando se olha para pessoas no autocarro ou no supermercado não se percebe que estão ali várias pessoas lésbicas ou gays. O pressuposto automático nas cabeças é o de que todas as pessoas são heterossexuais. O pressuposto é errado (e isso tem consequências graves também em campos como a saúde ou a educação ou a segurança ou a justiça, porque têm que ser feitas a pensar em todas as pessoas).
Mesmo assim, mesmo não precisando, as pessoas heterossexuais passam a vida a apregoar a heterossexualidade porque falam da vida privada, ou seja, das relações que têm. Põem a fotografia do casal em cima da secretária sem sequer hesitar ou pensar duas vezes.
3. As pessoas lésbicas ou gays ou bissexuais só existem se disserem que o são. Porque por um lado ninguém espera que o sejam e porque, por outro lado, a orientação sexual, ao contrário de outras categorias identitárias que geram discriminação, não é visível.
Ao longo do tempo, a discriminação funcionou sempre com base no silenciamento: se ninguém disser que é lésbica ou gay, então "essas pessoas" não existem e não temos essa chatice de ter que perceber que existem. É que depois ainda vão ter a mania que têm direitos.
Pois é, existimos mesmo e temos direitos, imagine-se. Iguais e tudo. Até o direito a dizer quem somos.
O silêncio é, portanto, e continua a ser a principal medida da discriminação. Do medo que sempre foi imposto. E o silêncio tem custos enormes na vida das pessoas lésbicas e gays. Criticar quem quebra o silêncio por ter quebrado o silêncio é precisamente apoiar a discriminação. E é discriminar, porque ninguém exige silêncio a pessoas heterossexuais.
Não perceber isto é não perceber nada. E não querer perceber ou não querer pensar no assunto é querer discriminar.
E não, é claro que não há qualquer simetria em dizer-se que se é lésbica ou gay ou em dizer-se que se é heterossexual. Porque obviamente ninguém é alvo de crimes de ódio por ser heterossexual. Infelizmente, não é o caso para lésbicas e gays, que sempre cresceram a ouvir-se como insulto.
E sim, claro que é fundamental que haja cada vez mais pessoas a dizer para que jovens lésbicas e gays saibam que há mais pessoas que também o são, ao contrário do que os silêncios têm vendido. Afirmar-se contra o insulto e contra o preconceito exige força - e exige que haja modelos positivos que ajudem a essa afirmação.
Pois é, existimos. Dizemos. Vamos continuar a dizer, e cada vez mais, para ver se percebem o mundo um bocadinho melhor. E, já agora, para além disso falaremos da vida privada se e como nos apetecer. Habituem-se.
2 comentários:
José Dias
-A minha liberdade termina quando ponho em causa
a liberdade de outros.
"Tudo vos é Lícito mas nem tudo vos convém"
Sem dúvida, José Dias. Abraço e volte sempre.
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