domingo, 16 de novembro de 2025

Dia de José Saramago


José Saramago, nascido em 1922 na aldeia ribatejana de Azinhaga e falecido em 2010, em Lanzarote, consolidou-se como uma das vozes literárias mais singulares e influentes da língua portuguesa. A sua vida, marcada por origens humildes, por um percurso autodidata e por uma profunda consciência social, moldou uma obra que interroga, de forma obstinada, as estruturas de poder, as fragilidades humanas e as possibilidades éticas do mundo contemporâneo. Tipógrafo, serralheiro mecânico, funcionário público, tradutor e jornalista, Saramago chega à literatura “tarde”, mas com uma maturidade que lhe permite transformar o romance num espaço de experimentação filosófica, histórica e política.

A obra saramaguiana caracteriza-se por uma escrita inconfundível: longos parágrafos, uso singular da pontuação, diálogos integrados no fluxo narrativo e um narrador irónico, muitas vezes cúmplice, que desmonta convenções literárias e desafia o leitor a participar no processo interpretativo. Essa forma, longe de ser mero artifício, revela uma visão do mundo onde a realidade é sempre problemática, polifónica, sujeita a reinterpretações constantes. A sua linguagem, simultaneamente coloquial e metafísica, cria um espaço literário em que o quotidiano se cruza com o fantástico, não como fuga, mas como método de conhecimento.

O pensamento de Saramago assenta numa postura humanista e crítica. Ateu declarado, questionador pertinaz de instituições — sobretudo políticas e religiosas —, o escritor vê a literatura como instrumento de desvelamento do que se oculta por trás dos discursos oficiais. Em obras como Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis ou História do Cerco de Lisboa, revisita a História para expor as suas lacunas e manipulações, revelando a força das narrativas no exercício do poder. Noutros romances, como Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, constrói alegorias sociais que expõem a fragilidade das democracias, a tendência humana para a violência e a responsabilidade moral que cada indivíduo carrega, mesmo — ou sobretudo — quando tudo parece ruir.

A dimensão ética está também presente na centralidade que atribui à compaixão, à solidariedade e à memória das injustiças. Para Saramago, a humanidade só se reconhece plenamente quando se vê ao espelho das suas próprias misérias e contradições. Daí a insistência em narrativas que funcionam como experiências-limite, onde personagens comuns enfrentam situações extremas que as obrigam a reflectir sobre o sentido da liberdade, da dignidade e da convivência social.

A vida de Saramago, especialmente após conquistar o Prémio Nobel da Literatura em 1998, tornou-se também um gesto público de coerência com suas ideias. Ele utilizou a visibilidade para afirmar posições políticas contundentes, muitas vezes polémicas, mas sempre sustentadas por uma convicção ética profundamente enraizada. A sua mudança para Lanzarote após o episódio de censura de O Evangelho segundo Jesus Cristo é emblemática do modo como articulava criação literária, vida pessoal e intervenção pública.

No conjunto, vida, obra e pensamento formam uma unidade coerente: Saramago é um escritor que concebe a literatura como forma de resistência e de revelação; um intelectual que recusa simplificações e dogmas; um observador crítico que acredita, apesar de tudo, na possibilidade de o ser humano se tornar melhor. A sua escrita permanece como convite — e desafio — para que continuemos a interrogar o mundo com a mesma lucidez inconformada que ele cultivou ao longo de toda a vida.

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