Em 2022, o Estado português perdeu 1,2 mil milhões de euros em receitas fiscais devido à baixíssima carga de impostos e taxas que aplica no sector da aviação
Numa altura em que as emissões de dióxido de carbono no mundo têm de baixar praticamente para metade até 2030 para evitar os efeitos mais catastróficos das alterações climáticas, a aviação é responsável por emissões crescentes desse gás, colocando-a perigosamente em contramão com um clima estável. Uma das principais razões para este crescimento nas emissões reside numa subtributação e subregulação crónicas do sector, que o desincentiva a investir em tecnologias menos penalizadoras do ambiente e torna as viagens artificialmente baratas, fazendo aumentar a procura. A manter-se este estatuto fiscal privilegiado, o tráfego aéreo e as emissões continuarão a crescer insustentavelmente.
A ZERO, como membro da Federação Europeia de Transportes e Ambiente, revela um novo estudo que mostra o quanto as viagens aéreas europeias de passageiros tiram partido de benefícios e isenções fiscais, olhando para as receitas que são efetivamente arrecadadas pelos Estados e comparando-as com as que deveriam ter sido angariadas se o sector da aviação deixasse de ter esses benefícios e isenções. Este diferencial de que o sector beneficia é, na prática, um buraco fiscal nos cofres do Estado e uma borla às companhias aéreas, as quais muito comumente não cobram IVA na emissão de bilhetes (ou cobram a uma taxa reduzida), abastecem de combustível não sujeito a imposto sobre produtos petrolíferos, e têm licenças de emissão de dióxido de carbono atribuídas gratuitamente. O estudo debruça-se sobre os países da UE27, Reino Unido, Noruega, Suíça e Islândia (referidos como Europa), e os resultados dizem respeito ao verificado em 2022 e previsto para 2025 (assumindo que por esta altura o tráfego aéreo já terá recuperado totalmente face aos níveis pré-pandemia).
Borla fiscal na Europa é todos os anos muito superior à totalidade do PRR português
Em toda a Europa, o fosso fiscal representa um enorme défice de receitas públicas. O estudo constata que, em 2022, os governos europeus perderam 34,2 mil milhões de euros dessa forma, o que, em termos comparativos, é mais de 50% superior a todo o envelope financeiro do Plano de Recuperação e Resiliência português. Na União Europeia (UE), que só cobrou em 2022 cerca de 5 mil milhões de euros em taxas e impostos à aviação, esse valor foi de 26,4 mil milhões de euros – ou seja, a UE no ano passado só cobrou cerca de 16% da receita que deveria ter cobrado.
Estes benefícios comparáveis tiveram ainda implicações em termos de emissões, pois viabilizaram um acréscimo de 34,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) emitidas para a atmosfera. Se contabilizados os efeitos não CO2 – que incluem a emissão de outros gases com efeito de estufa, tais como óxidos de azoto e vapor de água, bem como a formação de contrails (rastos de condensação) que têm um efeito de aquecimento da atmosfera –, o efeito é de cerca de 104,4 milhões de toneladas de CO2 e, o que é perto do dobro do total das emissões anuais registadas em Portugal em 2021.
Este paraíso fiscal tem efeitos muito prejudiciais na economia e ambiente, pois ao favorecer um sector em detrimento de outros leva a distorções de mercado, reduzindo a concorrência – da ferrovia, por exemplo –, tem custos de oportunidade – pois limita a receita dos estados e a disponibilidade de fundos para investimentos públicos na descarbonização das economias, incluindo a do sector da aviação –, exponencia um modelo de mobilidade insustentável assente em viagens aéreas artificialmente baratas sustentadas pelos contribuintes e poluentes, em que o princípio do poluidor pagador não é respeitado, e não dá o sinal necessário às companhias para adotarem tecnologias menos prejudiciais do ambiente.
Em 2025, caso os governos nacionais e da UE não acabem com estes benefícios, o buraco fiscal aumentará para 47,1 mil milhões de euros na Europa, e 35,7 mil milhões de euros na UE. Isto significa também um buraco crescente na redução de emissões de dióxido de carbono.
Uma borla fiscal do Estado português à TAP e às outras companhias aéreas de 1,2 mil milhões de euros em 2022
No caso de Portugal, em 2022 o Estado português perdeu 1,2 mil milhões de euros em receitas fiscais devido à baixíssima carga de impostos e taxas que aplica no sector da aviação. Em 2025, se o Governo não revir os benefícios que aplica às companhias aéreas que operam no país, este valor atingirá mais de 1,4 mil milhões de euros, provavelmente mais de 1,5 mil milhões de euros considerando as projeções de crescimento do turismo em Portugal. Trata-se de valores anuais, que poderiam pagar a descarbonização do transporte rodoviário público em Portugal ou a terceira travessia exclusivamente ferroviária entre Chelas e Barreiro, uma infraestrutura essencial que permitirá operar serviços que competem com o transporte aéreo nas ligações até 600 quilómetros, permitindo a ligação Lisboa-Madrid em cerca de três horas.
Em Portugal não há impostos sobre o combustível dos aviões – situação comum ao resto da UE, em que as companhias aéreas nunca pagaram um único cêntimo deste imposto –, o IVA sobre os bilhetes é inexistente ou baixo – é aplicada uma taxa de IVA de 6% nos voos domésticos continentais –, é aplicada uma quase inexpressiva taxa de carbono fixa de dois euros por bilhete – que diminui nuns meros 3% o buraco fiscal da aviação em Portugal. Para agravar, as licenças de emissão de CO2 a que as companhias estão sujeitas só se aplicam nas viagens intraeuropeias, e muitas são oferecidas – o que também é comum ao resto da UE. O que não é comum ao resto da UE é que, no conjunto, em Portugal estas receitas representam apenas cerca de 10% do que deveriam representar, o que compara com os 16% na UE.
Só a TAP beneficiou em 2022 de 450 milhões de euros em isenções e subsídios fiscais – 270 milhões de euros por via direta de impostos sobre o combustível e sobre o preço do carbono e 180 milhões por via indireta do IVA e taxas de que os seus passageiros beneficiam.
É urgente a aplicação do princípio do poluidor pagador na aviação, pondo as companhias e passageiros a custear todos os prejuízos climáticos e ambientais que originam
No entender da ZERO e das suas congéneres europeias, é preciso a nível europeu acabar muito rapidamente com as isenções fiscais injustificadas ao combustível de aviação – por que razão a gasolina e o gasóleo para transporte rodoviário de passageiros e mercadorias são taxados (e bem) e o jet fuel não é? –, garantir que o Comércio Europeu de Licenças de Emissão cobre todas as emissões de carbono de todos os voos, incluindo os de longo curso, e aplicar IVA em todos os bilhetes de avião a uma taxa suficientemente elevada (o estudo recomenda uma taxa de 20%).
No curto prazo, os governos nacionais não estão de mãos atadas e podem e devem aplicar as suas próprias taxas desenhadas de forma a fechar o buraco fiscal. No caso de Portugal, essa taxa deveria ser de cerca de, em média, 20 euros para uma viagem doméstica, 48 euros para uma viagem intraeuropeia e 281 euros para uma viagem intercontinental de longo curso. Mas esta taxa pode ser aplicada diferenciadamente, por exemplo, incrementalmente em função do número de viagens que o passageiro faz regularmente, i.e., a chamada taxa de passageiro frequente, penalizando sobretudo quem viaja muito. Este tipo de taxa ajuda a reduzir o impacto ambiental das viagens aéreas, desencorajando voos excessivos e reduzindo as emissões.
Para a ZERO, a aplicação do princípio do poluidor pagador na aviação implica que as companhias aéreas e passageiros custeiem todos os prejuízos climáticos e ambientais pelo quais são responsáveis – por exemplo, pagando o ar condicionado em escolas e hospitais devido a Verões mais quentes –, e por conseguinte parte das receitas arrecadadas deve ser para aí dirigida. Paralelamente, deve-se assegurar que a outra parte é reinvestida em tecnologias limpas, incluindo combustíveis limpos na aviação (tendencialmente combustíveis sintéticos produzidos a partir de hidrogénio verde e CO2 capturado) e promoção e desenvolvimento de modos de transporte alternativos menos poluentes, como o ferroviário. A ZERO realça que estes impostos não devem ser percebidos como uma punição, mas antes como um imperativo social e ambiental.
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