quinta-feira, 28 de julho de 2022

O que é que a Zara, a H&M ou o Lidl têm a ver com a brutal ditadura de Myanmar?

A brutalidade da Junta Militar que governa Myanmar desde o golpe de Estado de fevereiro de 2021 voltou a ser notícia dia 25 de Junho, devido à execução de quatro opositores do governo, enforcados por causa das suas atividades pró-democracia, a que os militares no poder chamam “terrorismo”. Mas, esta terça-feira, um relatório de uma ONG sobre os abusos de que são alvo as trabalhadoras do setor têxtil daquele país volta a colocar as atenções sobre a antiga Birmânia. E não só: o mesmo relatório coloca no centro das atenções marcas internacionais tão conhecidas como a Zara, a H&M, a Primark ou o Lidl, que comercializam produtos fabricados naquele país em total desrespeito pelos direitos humanos mais básicos.


O relatório (que pode consultar aqui) é do Business & Human Rights Resource Centre (BHRRC), uma Organização Não Governamental (ONG) internacional, sediada em Londres, que monitoriza o impacto das empresas nos direitos humanos. Segundo o estudo desenvolvido em Myanmar ao longo dos últimos dezoito meses - ou seja, desde o golpe de Estado que permitiu à Junta Militar tomar o poder e terminar com quase uma década de experiência democrática no país -, verificam-se "abusos generalizados e sistémicos nas cadeias de abastecimento das marcas internacionais".

Que tipo de abusos? No fundo, quase todos os que se possam imaginar, nomeadamente roubo de parte do salário, horários de trabalho abusivos, horas extraordinárias forçadas e não remuneradas, repressão de qualquer tipo de associação - nomeadamente sindical - e ainda violência baseada no género e assédio sexual. Para além de violência pura e dura - há relatos de mulheres que levam pontapés, socos no peito e na cabeça, que são empurradas, insultadas e humilhadas em público nestas fábricas.

Na linha da frente do movimento pró-democrático

A informação refere-se ao setor têxtil, um dos grandes empregadores de Myanmar, com uma mão de obra de cerca de 700 mil pessoas, das quais cerca de 90% são mulheres. Há dados relativos a 70 fábricas cuja produção acaba por ser incorporada na cadeia de valor de grandes marcas internacionais de têxtil e pronto a vestir.

A atenção ao setor têxtil não é um acaso: é aquele cujos trabalhadores mais se destacaram na linha da frente do Movimento de Desobediência Civil que alastrou pelo país após o golpe militar. Estudantes, trabalhadores fabris e agricultores, um pouco por todo o país, resistiram à Junta Militar, “arriscando as suas vidas e meios de subsistência para exigir o fim da ditadura e para restaurar a democracia em Myanmar”, relata o BHRRC.

“Para manter o poder, os militares responderam com força letal à oposição e à dissidência. Tem sido noticiado que pelo menos 55 ativistas sindicais foram mortos e 301 líderes sindicais e membros do movimento laboral foram presos” em pouco mais de um ano.

Ao longo desta investigação foi ainda documentado o assassinato de sete trabalhadores pelas forças militares e outros seguranças armados, e 15 casos de prisão e detenção arbitrária de trabalhadores.

Este é um relato esclarecedor: “A 15 de Março de 2021, seis trabalhadores - incluindo uma mulher líder sindical - de Xing Jia Calçado foi baleada e morta pelos militares e pela polícia depois dos trabalhadores se terem reunido fora da fábrica para reivindicar salários não pagos. Cerca de 17 pessoas foram presas, incluindo mulheres trabalhadoras da fábrica e membros das suas famílias”. Esta fábrica fornecia calçado para a marca norte-americana Justin Brands, que descreveu estes relatos como "fabricação completa" - prometeu conduzir uma investigação independente sobre os tiroteios, e continuou as operações como se nada se tivesse passado.

O mesmo tipo de brutalidade foi usado contra os estudantes e os agricultores nas áreas rurais da antiga Birmânia. Observadores da ONU têm recolhido provas de crimes contra a humanidade perpetrados pelas Forças Armadas, incluindo a destruição total de aldeias e tortura e assassinato de populações civis em territórios onde a resistência armada pró-democracia se tem feito notar.

Nas dezenas de fábricas de vestuário sob a análise da ONG, foram investigados mais de 100 casos de alegados abusos laborais e dos direitos humanos, perpetrados contra pelo menos 60.800 trabalhadores. Mas este é apenas um número indicativo, por baixo, pois algumas queixas referem-se a abusos cometidos contra elevados números de trabalhadores da mesma fábrica.

Os casos documentados, diz uma porta-voz da ONG, são "apenas a ponta do iceberg, dadas as severas restrições às liberdades cívicas e à apresentação de relatórios sob domínio militar, e o risco acrescido de represálias para os trabalhadores que se pronunciam contra os abusos".

A amostra é, porém, suficiente para a BHRRC denunciar uma cultura “generalizada” de abusos e violações de direitos e exigir que as marcas internacionais cortem com esses fornecedores.

Grandes marcas de todo o mundo

Das fábricas têxteis de Myanmar saem produtos que integram as coleções de 32 marcas internacionais tão conhecidas como Zara e Bershka (do grupo espanhol Inditex), H&M, Adidas, Primark, Lidl, Mango, C&A, Guess, Next, Moschino, Carhartt, a japonesa Uniqlo, a francesa Kiabi ou o grupo dinamarquês Bestseller (com marcas como Jack&Jones ou Only).

“Os dados destacam a escala e o alcance dos abusos nos 18 meses desde que os militares tomaram o poder e o impunidade generalizada de que gozam os perpetradores”, lê-se no relatório, divulgado esta terça-feira. A informação recolhida junto de parceiros locais - incluindo todos os principais sindicatos do setor têxtil - “levanta sérias questões às marcas de vestuário e aos seus investidores relativamente à sua capacidade de se abastecerem de forma responsável, conduzir a devida diligência em matéria de direitos humanos e proteger os trabalhadores nas suas cadeias de abastecimento.”

A conclusão é clara: se não são capazes de garantir o respeito pelos direitos dos trabalhadores e um pagamento justo, estas marcas devem abandonar “de forma responsável”

"As marcas devem acordar para a dura realidade de que já não existem condições de trabalho decentes em Myanmar e a continuação dos negócios como habitualmente já não está a ajudar a 'proteger empregos e trabalhadores', como tem sido repetidamente afirmado", disse Alysha Khambay, chefe dos direitos laborais no Business & Human Rights Resource Centre, citada pelo jornal de Hong Kong South China Morning Post. "Quando os militares não estão a realizar buscas porta-a-porta em albergues e casas, a sua presença está a ser solicitada pelas fábricas para ameaçar os trabalhadores para que fiquem em silêncio", acrescentou Khambay.

Prioridade aos lucros sobre os direitos humanos

Segundo esta ONG, e os grupos de trabalho com quem o relatório foi feito, “as marcas que permanecem em Myanmar beneficiam da repressão dos direitos laborais sob domínio militar e dando prioridade aos lucros sobre os direitos humanos, num país onde os trabalhadores do vestuário - 90% dos quais mulheres - ganham agora menos de 2 dólares por dia [o mesmo em euros].”

Em mais de uma centena de casos analisados, as violações mais comuns são o roubo de salários (55 casos), cargas laborais abusivas e horas extraordinárias obrigatórias e não pagas (35 casos), e ataques à liberdade de associação (31 casos). Seguem-se os casos de violência e assédio com base no género, e a conivência entre os patrões das fábricas e os militares que usam da sua força para obrigar os trabalhadores à submissão.

Eis um caso exemplar dessa aliança efetiva entre capital e força das armas: “Em maio de 2021, militares e policias invadiram a fábrica Gasan Apparel, para prender trabalhadores suspeitos de terem participado em protestos contra o golpe. Antes da rusga, os trabalhadores alegadamente ouviram o gerente da fábrica ao telefone com alguém que acreditam ser um oficial dos militares. Trabalhadores e sindicatos alegam que a direção da fábrica conspirou com os militares, fornecendo às forças de segurança os nomes dos líderes dos sindicatos. Na altura, essa fábrica estava a produzir para Inditex e para a Mango. Na sequência do incidente, as marcas confirmaram ter cortado os laços com a fábrica em maio e em setembro de 2021, respetivamente.”
Só dois gigantes internacionais saíram do país

Pouco tempo após a tomada do poder pela Junta Militar, os sindicatos começaram a apelar às marcas internacionais para que se retirassem “de forma responsável” de Myanmar, dada a impossibilidade prática de verificarem as condições de trabalho nesses locais da sua cadeia de valor. Porém, só duas marcas o fizeram, denuncia o relatório.

“Apesar dos apelos dos sindicatos locais e internacionais para que as marcas internacionais se retirem de Myanmar até à restauração da democracia, apenas duas empresas (Tesco e ALDI) saíram”.

O gigante britânico de retalho Tesco diz ter saído de vez de Myanmar na primavera deste ano, seguindo as recomendações dos sindicatos locais e internacionais. O grupo alemão ALDI já tinha feito o mesmo em setembro de 2021, e explicou a sua decisão "devido ao caráter imprevisível da realização das nossas atividades comerciais no país e à dificuldade de cumprimento dos mais básicos processos de due diligence [verificação] dos direitos humanos”.

Os argumentos de quem fica

Outras marcas, como a Primark, a H&M ou a Bestseller começaram por suspender as compras a fábricas de Myanmar na sequência da tomada do poder pelos militares. Mas depressa retomaram a relação com as fábricas do país, invocando a importância de proteger aqueles postos de trabalho como um fator decisivo para essa atitude. No entanto, escreve a ONG, essa alegadas preocupação com os trabalhadores locais não bate certo com o comportamento recente das mesmas marcas no início da pandemia da COVID-19. “Algumas destas mesmas marcas - e muitos outros que se abastecem em Myanmar - cancelaram encomendas e solicitaram descontos retroativos com pouco respeito pela remuneração dos trabalhadores da sua cadeia de abastecimento, que foram despedidos aos milhares sem pagamento de salários devidos quando as fábricas eram obrigadas a fechar.”

Alguns trabalhadores do setor do vestuário admitem ter medo de perder os seus rendimentos se as encomendas internacionais secarem e as fábricas fecharem. Mas os sindicatos e grupos de trabalho acusam as marcas que permanecem em Myanmar porque dão “prioridade aos lucros em detrimento dos direitos humanos”, e “até de beneficiarem da tomada do poder pelos militares e subsequente repressão dos direitos laborais”.

“Nestas circunstâncias, as marcas de vestuário devem lembrar-se que a inação não é uma opção”, lê-se no relatório divulgado 26 de Julho. “No mínimo, devem empreender uma diligência elevada e contínua em matéria de direitos humanos para determinar se são capazes de se abastecer de forma responsável junto de fornecedores de Myanmar; onde não o são, devem ser consideradas estratégias de saída responsável, para cumprir as normas internacionais que as marcas adotaram”.

As marcas que responderam às acusações da BHRRC rejeitam que estejam mais preocupadas com os lucros do que com os direitos humanos e garantem, sem exceção, que estão preocupadas com a situação, prometendo investigar as alegações e tomar decisões empresariais em conformidade.

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