Numa troca de mensagens anterior à entrevista que se segue, Ricardo Gusmão, psiquiatra no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, e presidente da EUTIMIA – Aliança Portuguesa Contra a Depressão em Portugal afirmou, num esforço de contextualização do assunto, que Portugal é o país da Europa Ocidental que pior regista os suicídios. Também disse que muitas das mortes por suicídio são registadas indevidamente e que por isso o suicídio é “largamente sub-representado em Portugal”.
“Chama-se a isso ‘ocultação’ e ‘suicídios mascarados’”, fenómeno que, “apesar de reconhecido” no país, continua a ser “um problema gravíssimo”, disse o também docente e investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, já durante a entrevista ao Expresso, realizada na véspera do Dia Mundial da Saúde Mental (sábado, 10 de outubro). “Calcula-se que sejam ‘ocultados’ nos registos até mais 30, 50 ou 60% de suicídios, como mortes violentas indeterminadas, como acidentes e como morte de causa natural não especificada”. Isso leva, afirmou também, a que se continue a “insistir na ideia de que Portugal é um país de baixas taxas de suicídio”, uma “ideia errada e perigosa que impede a resolução do problema”.
Portugal é, segundo afirmou, “o país da Europa Ocidental que pior regista os suicídios”. Porque é que isto acontece?
Um dos indicadores de desenvolvimento global sustentável que a comunidade internacional acordou é a necessidade de reduzir expressivamente o número de suicídios durante a próxima década. Há cerca de um milhão, talvez mais, mortes por suicídio todos os anos no mundo. As mortes por suicídio são evitáveis e, desta forma, a sua redução é um desígnio importantíssimo de saúde publica. É preciso ter isto em atenção: o suicídio não é nenhum mistério insondável — sabemos quais são os seus determinantes e, principalmente, sabemos que acontecem quando as pessoas estão doentes, com doenças psiquiátricas, ou eventualmente quando estão num estado psíquico de grande fragilidade, o qual seria transitório se o tempo não se esgotasse tragicamente. O que frequentemente ocorre é falta de comunicação.
Como assim?
Quem sofre não comunica e os que lhe são próximos não percebem. A pessoa suicida está, muitas vezes, terrivelmente sozinha. É por isso que mais de metade dos suicídios sucedem na primeira tentativa. Os outros ficam a sentir-se terrivelmente culpados por não terem conseguido evitar a morte e sentem-se abandonados por quem parte, insuficientes e irrelevantes face à partida do familiar ou amigo. As pessoas que sobrevivem a um suicídio ficam em risco de depressão e suicídio. Sabemos isto inequivocamente. Mas não se fala sobre o assunto. E às vezes fala-se adensando o tabu, o estigma, descrevendo o suicídio como algo misterioso, insondável e imprevisível. O conhecimento de todos e da consciência da dimensão do problema pode mitigá-lo.
E os números disponíveis não correspondem à realidade, é isso?
A dimensão do problema do suicídio é maior do que os números podem fazer crer. Chama-se a isso ‘ocultação’ e ‘suicídios mascarados’. Em Portugal, apesar de ser um fenómeno reconhecido, é um problema gravíssimo. Somos um dos países da Europa, aliás, que pior regista os suicídios, juntamente com a Lituânia e a Polónia. Calcula-se que sejam ‘ocultados’ nos registos até mais 30, 50 ou 60% de suicídios, como mortes violentas indeterminadas, como acidentes e como morte de causa natural não especificada.
Mas por que razão isso acontece?
Os motivos da ocultação são muito heterogéneos, determinados por múltiplos agentes e funcionam de forma cumulativa. Podemos sugerir que são, de alguma forma, do foro cultural, tem a ver com a questão do estigma. A sua expressão é diferente consoante as zonas do país: no sul regista-se melhor os suicídios do que no norte — daí que os número no Alentejo sejam mais elevados — assim como se regista melhor nos centros urbanos, nos homens e nos jovens. Ainda há uma hierarquia entre as várias regiões no que diz respeito ao número de suicídios, mas estão todas muito mais próximas do que estavam há 20 anos. O que é certo, e voltando à questão da ocultação, é que nem todas as mortes violentas são autopsiadas, e só apenas cerca de 60% dos suicídios.
Porquê?
Parte importante do volume do problema parece consistir nos certificados de óbito emitidos nos hospitais e clínicas, nos quais são registados cerca de 90% das mortes violentas indeterminadas. Em Portugal, para cada três mortes por suicídio existem duas mortes violentas indeterminadas. Podemos morrer de morte natural ou morte violenta. As mortes violentas são as intencionais, suicídio e homicídio, e as não intencionais, os acidentes. As indeterminadas são aquelas para as quais não se reconhece a intenção. Na Europa, em média e no pior dos cenários, para cada 20 mortes por suicídio registado, ocorre uma morte indeterminada. Em Portugal, para cada 20 mortes por suicídio registado, ocorrem 12 mortes indeterminadas. Para cada 1000 suicídios anuais registados no nosso país, ocorrem mais 600 ocultos, invisíveis, desconhecidos.
Quais as consequências desse sub-registo?
Por causa disso, a dimensão do problema fica diminuída. Há anos que se insiste na ideia de que Portugal é um país de baixas taxas de suicídio. É uma ideia errada e perigosa que impede a resolução do problema por parte dos decisores políticos, das organizações de saúde e clínicos.
O Governo lançou recentemente uma campanha nacional de prevenção do suicídio. Como vê essa iniciativa?
Desde 2006 que ocorrem projetos e iniciativas de amplitude local e nacional e seria muitíssimo desejável que essas iniciativas pudessem ter a desejada visibilidade e impacto. Se não melhorarmos o registo da morte por suicídio, corremos o risco de chegar a atingir a redução de 20% de suicídio prevista nos SDG [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável] até 2030 à custa da ocultação de suicídios. Será muito importante que essa redução possa acontecer por um nexo de causalidade real e efetivo: ação de saúde publica resultando na prevenção de mortes por suicídio. Seria muito desejável que fossem criados mecanismos para estimular a correta codificação dos óbitos violentos — homicídio, suicídio e acidentes — nos hospitais. Além disso, seria igualmente útil que os responsáveis locais pela saúde mental pudessem receber informação precoce e confidencial sobre as mortes por suicídio, numa perspetiva de vigilância e para poderem desencadear ações de prevenção junto dos familiares e amigos.
Porque é que, na sua opinião, não se investe nem dinheiro nem tempo no suicídio?
O suicídio está carregado de estigma e ainda se promove a ideia de que encerra um mistério ou uma questão filosófica. Às vezes até parece que é normal, ou um direito humano ou de cidadania, podermos querer matar-nos. Não é verdade. É um mito. É quase sempre um sinal grosseiro de disfunção, tal como qualquer homicídio é. Que Camus me perdoe, mas o suicídio é tão somente uma questão de saúde, impactada por fenómenos socioculturais é certo, tal como todas as outras questões de saúde.
É possível identificar tendências na evolução do número de suicídios em Portugal?
Houve um decréscimo significativo médio entre 1932 e 1999. Entre 1992 e 1999 esse decréscimo é exagerado, por causa da tal ocultação. Foi nessa altura que se alterou a forma de registar toda a mortalidade, tendo sido introduzida a classificação de mortalidade indeterminada. Nessa década, chegou a haver seis mortes indeterminadas para um suicídio. Em termos gerais, a tendência é decrescente, mas a um ritmo mais lento do que a diminuição da mortalidade em geral. O suicídio tem, além disso, aumentado mais acima dos 55 anos e decrescido nos mais jovens, mas ambas as tendências são ténues.
Com a pandemia espera um aumento do número de suicídios?
Em 1918, durante a gripe espanhola, não se observou um aumento do suicídio em Portugal. Durante a crise pandémica de 1957, houve um ligeiro aumento, mas provavelmente inexpressivo. E durante a crise global financeira, entre 2012 e 2014, houve um aumento nos homens com idades entre os 50 e os 60 anos, mas pouco significativo, entre 2% a 3%. De facto, qualquer crise tem o potencial de aumentar o risco de suicídio. Todavia, as crises que se assemelham a ‘estados de guerra’ aumentam a coesividade e o capital social, bem como a resiliência dos indivíduos. Todos nos tornamos mais solidários.
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