POR SERAFIM FERREIRA
Trata-se sobretudo de um discurso sobre a cidade por parte de quem vive perto da vista e nunca longe do coração, porque desde sempre Mário Cláudio traz consigo a "cidade no bolso", ou seja, domina as suas sombras e lugares de um modo bem pessoal desde os tempos de sua infância. Mas é ainda a forma literária de pela crónica ter sabido fixar o espaço, o tempo, os hábitos, o clima e as gentes portuenses que, por uma história fixada quase sempre no fascínio de quem melhor a conhece e nela vive ou viveu, persistem como sinais e lugares de afirmuma cidade em que é urgente criar memóriação ou negação, de perfeição ou imperfeição pelas grandezas os dentro dos seus muros. Assim, este último livro de Mário Cláudio, numa linguagem depurada, objectiva e por vezes sinuosa, mas claramente saída das entranhas, na emoção do que descreve, relembra ou evoca, é também um modo próprio de traçar ao longo das páginas de A Cidade no Bolso uma espécie de "geografia sentimental" ou "memória descritiva" do que de essencial se mantém vivo nos anais da cidade e por uma "escrita em espiral", encadeando todas referências literárias ou históricas, saber o autor de Ursa maior falar do que sente e mais o comove, do que o fascina ou mais justifica a sua louvação da cidade em que nasceu e vive há mais de cinquenta anos.
Porém, pela longínqua evocação da cidade à beira-Douro, quando se atravessa uma e outra vez a ponte dom Luiz e se estremece no balanço do tabuleiro inferior, um pouco acima dos vinte metros do nível das águas, a antiga, velha e nobre cidade, de que resta a não perdida lembrança de ter sido por estas pedras e lugares que houve nome de Portugal, ainda na presença de Vímara Peres de outros combates, ou na memória tão próxima de Camões a ter assim enaltecido: Lá na leal cidade donde teve / Origem (como é fama) o nome eterno / De Portugal, armar madeiro leve / Manda o que tem o leme do governo, permanece a memória e a presença do casario escuro e quase todo medievo, pedras, arcos e ruelas da Ribeira e do Barredo, Muro dos Bacalhoeiros, ou nas tortuosas e labirínticas ruas da Lada e da Fonte Taurina, por onde se cruzam na força de tantos outros rostos e falas, ditos e graçolas marcadas pelo modo de falar castiço e cantante, sim, as gentes do Porto, dizem os seus poetas, jornalistas, cronistas e prosadores, sempre falaram mal e muito malcriadamente, na conhecida franqueza de possuir um carácter tão peculiar como lembrava Camilo, cuja obra literária encontrou nos meios sociais e populares do Porto (e não apenas no celebrado romance Amor de Perdição) alguns profundos e claros motivos de inspiração, por entre certos sarcasmos e a declarada ternura com que sempre retratou as gentes nortenhas.
Ora, de tudo isto se fala, repito, neste discurso sobre a cidade em que Mário Cláudio nos redescobre um outro Porto sentido por dentro, nos sinais do tempo ou nas anotações referenciais que nos remetem para toda a história da cidade, mas sempre nos fala com a comoção de quem sabe do que fala e pelas palavras, numa teia de mil minudências, sabe entrelaçar ou interligar todos os fios históricos ou pessoais para fazer sair a "cidade do bolso" e dá-la a conhecer ao leitor mais distraído ou menos imbuído no "espírito do lugar" em que nasceu, vive e há-de morrer, sabe-se lá. E, se nesta leitura tão própria e única de revisitar o Porto os olhos ainda se perdem na paisagem, no incessante movimento da ponte dom Luiz ou do Freixo, e do outro lado do rio por cima do casario encastelado de Gaia, o Mosteiro do Pilar lá no alto e diante dele o Jardim do Morro de outras recordações de infância, é certo que, em passeio a pé pela zona marginal do rio, mesmo no coração da urbe, na velha zona de influência mercantil inglesa, cujos traços ainda estão visíveis em edifícios como os da Alfândega, Palácio da Bolsa ou Feitoria Inglesa, nas cercanias da praça do Infante que aqui nascera, dizem, se não pode deixar de admirar o belo mural a que Júlio Resende chamou "Ribeira Negra", no gosto de reabilitar de outra forma a memória destas gentes e lugares ribeirinhos, por entre imagens e símbolos que de longe nobilitam a presença e o entendimento da paisagem: imagens de crianças atrevidas nos segredos das águas do antigo rio, em mergulhos que se repetem nas tardes de calor, mulheres às portas no olhar dos filhos em brincadeiras desprevenidas, roupas lavadas e estendidas ao sol nas sacadas das velhas casas, antiga teia entrelaçada pelos mistérios da vida e no esquecimento de muitas outras mágoas e lamentos.
Mas do Porto sempre se revivifica esse fascínio de no inalterável correr dos séculos, em anos de canseiras ou fome, alegria ou peste, entusiasmos colectivos ou revoluções fracassadas, protestos e motins populares na defesa da própria dignidade, patenteada nas larguíssimas centenas de páginas quase todas esquecidas ou relembradas. E no propósito de reabilitar a seu modo essa memória perdida ou menos apagada, Mário Cláudio evoca com grande serenidade de escrita e de emotividade muitos dos lugares de perfeição e de opção ou alguns dos vultos mais ilustres que se destacaram na vida da cidade. Mas sem nenhum excessivo ou despropositado bairrismo literário e apenas com esse sentido de louvação e redescoberta de tudo o que do Porto por aqui se pode sempre reencontrar nas sombras e lugares de muitos passos que se perderam no fio incessante da sua História. Ou como declara Laura Castro no prefácio a este livro de crónicas publicadas em vários jornais e revistas entre 1985 e 1997 e soube coordenar com uma clara compreensão de leitura da prosa de Mário Cláudio, poder dizer-se que o autor de Amadeo não se confinou "à cidade mais antiga, avança para os arredores, imperfeitos lugares, num aproveitamento da actual dicotomia de centro histórico e área metropolitana", porque "na abordagem desses lugares malditos, infringe o autor a regra erudita de urbanidades e ruralidades, ao tratar da transição entre uma coisa e outra".
Enfim, numa colecção dirigida por Helder Pacheco, este livro de Mário Cláudio é realmente mais uma achega literária para, como aliás se afirma na contracapa, descobrir o Porto através de todos os seus meandros, encantos, sortilégios e segredos vividos no quotidiano ou ainda guardados no tempo, revisitar lugares e encontrar cidadãos, instituições e agires que marcaram épocas e afirmaram o espírito dos lugares", como forma de amar a cidade e ter com ela uma relação de tão profunda intimidade e louvação como a que se sente na leitura de A Cidade no Bolso.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
MÁRIO CLÁUDIO
A CIDADE NO BOLSO
Ed. Campo das Letras / Porto, 2000.
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