O meu amigo JVC, do Professorices relembrou o que era a Cultura para Bento de Jesus Caraça, aquando de uma conferência em 1933. O meu amigo Paulo Araújo fez-me chegar um texto de 1933 de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), grande escritor português, lisboeta exilado em Nova Iorque durante boa parte da sua vida que também viveu alguns anos em Bruxelas.
Diz o meu amigo: O texto faz parte da antologia de inéditos "A amargura dos contrastes", hoje distribuída com o Independente. Fala dum tempo antigo numa cidade que não é a nossa, mas ajusta-se muito bem à nossa experiência de hoje.
Ver ainda: José Rodrigues Miguéis - um Homem do Povo na História da República
AS ÁRVORES
por José Rodrigues Miguéis (1933)
Lisboa é talvez, das cidades europeias, a menos arborizada, a mais pobre de verdura. Nenhuma dessas grandes massas de arvoredo que purificam e enobrecem a atmosfera da maioria das grandes capitais. Nenhum desses relvados onde, lá fora, em plena idade, as crianças por centenas se regalam de ar livre e de sol.
Nenhum lugar de repouso, de solidão, de reflexão. Por todo o lado o rumor, a agitação inútil da praça pública! Pensar naqueles parques de Bruxelas, enseadas calmas onde as massas de verdura bruscamente ensurdecem o tumulto da circulação, e se descobre, oculto entre os arbustos, um pequeno banco
consagrado à memória de um poeta, dum amigo das árvores!
Quando tiverem desaparecido as hortas e quintas que ainda lhe refrescam os subúrbios, roídos já da lepra de alvenaria e pronto invadidos pelos esquadrões cerrados do casario de mau gosto, em mesquinhos arruamentos que atestam a ausência de sentido urbanista no crescimento da capital - Lisboa ficará sendo o tipo acabado da cidade inabitável. E o lisboeta, para fugir aos calmores e à crueza da luz estival, terá apenas a magra sombra dos prédios, essa mesma reduzida à estreiteza dos passeios, onde mal há espaço para postes, basbaques e candeeiros.
Os nossos jardins, com suas raras árvores cortadas à escovinha, são exíguos quintais de família. E esses pobres seres tosquiados e atrofiados que se alinham como procissões de asilo ao longo das nossas avenidas, só por metáfora se chamam árvores. Lisboa, capital da caliça, é o paraíso, o logradouro dos
construtores.
E não venham dizer-nos que o povo não ama as árvores e a verdura: como há-de ele amar o que não tem? É ver como, em dias de sol no inverno, por esse raros talhões de relva que escaparam à sanha da pedra e cal, e à sombra das quatro árvores desse «deserto» Eduardo VII, no verão, se deleita e acoita a gente que não tem quintas em Sintra nem solários no Estoril...
Há cerca de três semanas que os ulmeiros desapareceram da Avenida. A princípio só nisso fizeram reparo o Stuart, os pardais, e alguns raros passeantes que gostam de ver o sol azul entre a folhagem. Não se sabe por que pruridos de consciência, alguém trouxe a questão para os jornais. Foi o sinal de mais umas destas tardias e inúteis campanhas de exibicionismo em que é fértil a nossa imprensa. Todas as almas boas da botânica, da fitobiologia, da fitopatologia, da entomologia, da agronomia e doutras respeitáveis burocracias, acordaram de repente do sono em que dormiam e desataram a descompor-se sobre os cadáveres das árvores abatidas. (...)
Só faltou que as escolas da capital fossem, debaixo da forma, depor ramos de flores nos buracos deixados nos talhões da Avenida pelo arranque das pobres árvores.
Entretanto, os insectos continuarão roendo tranquilamente o que nos resta de verdura e de paciência.
E se esses e outros inumeráveis conselhos, laboratórios e comissões se lançassem um dia, de acordo e boa vontade, ao trabalho de descobrir e aniquilar o insecto misterioso que lhes mina a eficácia e os impede sempre de acordar a horas de dar remédio aos muitos males que nesta terra esperam tratamento?
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