domingo, 5 de novembro de 2023

Utopia, por Frederico Lourenço


Esta semana tive o prazer de estar presente na abertura do festival literário Utopia em Braga. Os organizadores tiveram a ideia brilhante de convidar o Ricardo Araújo Pereira para uma sessão em que conversámos os dois, com a moderação admirável de Maria João Costa. Eu ainda não tinha tido o gosto de conhecer o Ricardo Araújo Pereira pessoalmente e fiquei rendido à inteligência, à simpatia e (esta não será surpresa) ao humor. A arte com que ele conseguiu pôr a lotação esgotada do teatro a rir impressionou-me no momento pelo misto irresistível de espontaneidade e de subtileza; foi só depois da sessão que me pus a pensar nos problemas técnicos de «timing» e de dosagem inerentes ao desafio de pôr um teatro inteiro a rir, usando para tal um meio apenas: a palavra. O Ricardo é um mestre da sua arte.
Porque é uma arte. Já na Grécia Antiga se tinha consciência da dificuldade (talvez invisível) da comédia. Numa peça apresentada em 424 a.C. chamada «Os Cavaleiros», o próprio Aristófanes reconheceu que «a comédia é a tarefa mais difícil de todas». Ele referia-se às exigências contraditórias do humor fácil e do bom gosto, mas também aos riscos a que os profissionais da comédia estão sujeitos. A mordacidade hilariante com que Aristófanes criticava e ridicularizava figuras no topo da hierarquia política em Atenas trouxe-lhe problemas e dissabores. Na Utopia de Braga, o Ricardo também focou esse aspecto: o que é ir «longe demais» quando se critica por meio do humor uma figura no topo da hierarquia política?
Em Roma, a liberdade de expressão de que Aristófanes pôde usufruir foi evocada com nostalgia por Horácio. Na Sátira 4 do Livro 1, Horácio abre o poema com os nomes dos três grandes cómicos de Atenas (além de Aristófanes, Cratino e Êupolis), lembrando como eles se podiam dar ao luxo de fazer uma marcação cerrada «multa cum libertate» aos seus contemporâneos. Horácio já não gozou da mesma liberdade, vivendo numa época de perigosa polarização política, em que dizer uma palavra errada podia resultar na «morte do artista»: morte metafórica ou mesmo real. O maior artista da palavra da geração anterior - Cícero - tinha sido condenado à morte pela liberdade excessiva com que usou da palavra. Felizmente, no Portugal em que vivemos, os riscos da liberdade de expressão para um cultor da comédia como o Ricardo Araújo Pereira limitam-se a acções judiciais como a que foi noticiada recentemente (e cujos contornos me parecem confusos).
Na conversa em Braga, os temas que a Maria João nos foi propondo dividiam-se entre os grandes, os enormes e os gigantescos. Falámos de Deus, da Bíblia, da história do cristianismo; vieram à baila gregos e romanos. A ponto de partida (como não podia deixar de ser) foi a Utopia de Thomas More, um livro escrito em latim e publicado em 1516, o mesmo ano da primeira edição impressa do Novo Testamento na língua original, o grego.
Thomas More imaginou a Utopia como uma ilha, aproveitando para tal uma ideia (não pude deixar de fazer essa associação!) de Horácio. Num dos poemas mais belos alguma vez escritos em latim (a que, na minha edição de Horácio, dei justamente o título «Utopia»), Horácio convida uma Roma que «se desmorona pelas próprias forças» a pôr-se a caminho rumo a uma nova localização insular, algures no «Oceano circunfluente» (em latim «Oceanus circumvagus»); esta transferência constituirá uma «fuga venturosa» (Epodo 16).
Uma pátria insular algures no Oceano faz-nos pensar nos Açores ou na Madeira, mas claro que não eram essas as localizações imaginadas por Horácio. Na realidade, «Utopia» significa em grego «Não-lugar». O mundo ideal não está aqui - nem é daqui. Dei por mim a propor ao Ricardo Araújo Pereira e à Maria João Costa que, afinal, o apelo do «Não-lugar» é tão forte que até Jesus afirmou «o meu reino não é deste mundo» (João 18:36).
Pensei também como, na primeira fase da poesia de Horácio, o apelo de «nenhures» esteve associado ao de «alhures»: é o caso do Epodo 16 que sugeriu a Thomas More a ideia da Utopia. Mas na poesia da sua fase mais madura, Horácio percebeu que desejar o que é utópico não resolve nem melhora o presente: «Aquilo de que estamos à procura está aqui - ou nenhures» (Epístolas 1.17.39).
A conversa com o Ricardo e com a Maria João durou uma hora, que voou como se tivesse durado cinco minutos. É claro que, no meio de tanta temática gigantesca, o imbatível humor da marca RAP pôs os minutos a voar ainda mais depressa. Por mim, eu teria querido ficar mais uma hora naquela utopia de palavras e de gargalhadas.
Mas sei que «querer» é um erro; e que «querer mais» é pior ainda. Horácio, como sempre, tinha razão: «Aos que muito querem, / muito falta» (Odes 3.16.42-43).

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