Por Brigid Grauman. Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. [FOLHA 10/6/07]
Plantar uma árvore
Nos anos 1970, o diretor de cinema alemão Werner Herzog era o favorito da contracultura, um cineasta visionário cujos pares incluíam Rainer Werner Fassbinder e Hans Jürgen Syberberg. Mas Fassbinder está morto e Syberberg silencioso, enquanto Herzog continua firme, e seus filmes ainda atraem seguidores apaixonados.Isso ficou evidente em uma recente sessão no Instituto Goethe, em Bruxelas, onde Herzog respondeu a perguntas depois de uma projeção.Várias pessoas mencionaram imagens que as acompanharam durante anos -as galinhas dançando no final de "Stroszek" (1977), o trigo ondulante nas primeiras cenas de "O Enigma de Kaspar Hauser" (1974). Pelas respostas de Herzog, esse tipo de reação emocional detalhada é não apenas aquilo de que gosta mas aquilo que espera. Como diretor, ele diz que busca esses momentos de "verdade extática", que têm o impacto da poesia. "É como uma iluminação, algo que fica como um eco dentro de você", explica, usando as mãos expressivamente, mais parecendo um francês que um alemão. Estamos num restaurante elegante de Bruxelas, um antigo açougue que se especializou em tripas e vísceras. Herzog tinha dito que queria conhecer um lugar tipicamente belga, então o que melhor para um homem que professa viver no limite? Vísceras pareciam apropriadamente radicais. Assim como o pequeno Peugeot com que o apanhei no hotel, o restaurante compacto parece pequeno para Herzog, um homem alto e espaçoso, de olhos tristes, oblíquos.
Sapatos surrados
Ele enfia embaixo da mesa seus sapatos cinza surrados, de caminhada. Eu fizera questão de notar seu calçados antes porque Herzog é conhecido por empreender caminhadas extraordinariamente longas. Certa vez ele foi a pé de Paris a Munique para ver uma amiga agonizante, a historiadora Lotte Eisner, uma jornada que mais tarde narrou em "Walking on Ice" [Caminhando no Gelo, 1974]. "Os ratos... Você não faz idéia de quantos ratos você vê quando caminha pelos campos", ele diz, recordando a viagem. Herzog tende a se afastar de seus contemporâneos, mas uma vez organizou uma retrospectiva da obra de Fassbinder."Fassbinder sempre estava num círculo de gays. Nós nos abraçávamos com rigidez, mas nunca fomos íntimos. "Quando não está viajando, Herzog, que foi casado três vezes e tem três filhos, hoje vive em Los Angeles. Seu meio-irmão, Lucki, trabalha como seu produtor. Ele se descreve como um contador de histórias e um poeta, e dirigiu mais de 50 filmes, incluindo documentários, que têm em comum uma visão do mundo ligeiramente distorcida, com poderosas paisagens povoadas por personagens movidos pela paixão, obsessão ou uma forma pessoal de integridade."Aguirre, a Cólera dos Deuses" (1972) é sobre uma busca fracassada por ouro na Amazônia pelos conquistadores espanhóis do século 16, liderados por Klaus Kinski, o ator que teve um relacionamento muitas vezes acidentado com Herzog durante os cinco filmes que fizeram juntos.
Criaturas extremas
Os heróis de Herzog são criaturas de extremos, como o homem inocente libertado na Alemanha do século 19 em "Kaspar Hauser", o visionário febril que quer abrir uma ópera nas profundezas da selva sul-americana em "Fitzcarraldo" (1982) ou o ativista americano em defesa dos animais Timothy Treadwell em "O Homem Urso" (2005).Herzog levanta sua cabeça grande e solene para explicar que não é atraído pelos excessos, mas os encontra por acaso.Ele lembra um momento surrealista em Los Angeles, no ano passado, quando um franco-atirador o atingiu quando era entrevistado pela BBC. "A bala -de pequeno calibre, não era uma bala séria- atravessou um catálogo que estava no meu bolso, por isso não me feri gravemente", diz."Todo mundo se apavorou. Eu não tive problemas." Balançando suavemente a cabeça, diz que tem uma capacidade singular para atrair eventos violentos. Recentemente, enquanto filmava na Antártida um documentário para a televisão, um "snowmobile" capotou em cima dele. "Ossos fortes", diz com satisfação por ter sobrevivido ileso. "Minha atitude sempre foi de que certos eventos não podem ser cobertos pelo seguro. "As filmagens de Herzog são, lendariamente, acompanhadas de falhas, dramas, mortes e acidentes. Enquanto ele relata com prazer teatral uma série de anedotas sobre como as equipes de filmagens habitualmente se rebelam, Herzog claramente mostra um gosto pelo histrionismo. Mas admite que, na realidade, a maioria das filmagens transcorre calmamente, e suas equipes o respeitam. A biografia de Herzog tem uma certa dimensão mítica. Para começar, seu verdadeiro nome não é Herzog. Ele nasceu Werner Stipetic, 64 anos atrás, mas trocou o nome croata de sua mãe por Herzog, que significa "duque" em alemão, "como Duke Ellington. Meu nome de guerra". Seus filmes constituem sua "biografia de sonho", diz. Nos últimos 15 meses, esses sonhos envolveram trabalhar em quatro filmes, entre eles "Rescue Dawn", a história de Dieter Dengler, um piloto americano nascido na Alemanha que foi derrubado no Laos em 1966 durante a Guerra do Vietnã. Dengler consegue escapar, depois de ficar prisioneiro em condições terríveis. Herzog diz que não se interessa por política, a Guerra do Vietname ou a posição dos EUA no mundo. "Não é uma história sobre guerra, é mais uma visão de Joseph Conrad sobre as provações dos homens", diz sobre o filme. Dengler, que morreu em 2001, também foi o tema do documentário de 1997 de Herzog "Little Dieter Needs To Fly" [O Pequeno Dieter Precisa Voar], e é claramente um homem no estilo que agrada a Herzog. Ambos têm forte capacidade de sobrevivência e nenhum deles teve pai: o de Dengler foi morto na Segunda Guerra Mundial, enquanto o de Herzog abandonou a família quando ele era bebê. Pai ausente. A falta de uma figura paterna, diz com uma risada franca, foi na verdade uma bênção. "Agradeço a Deus de joelhos por não ter tido um comandante me dando ordens. "A ausência do pai também tem uma ressonância simbólica para um artista nascido no final da Segunda Guerra, filho de uma "geração perdida", como diz. "Meu irmão mais velho e eu éramos "homens" aos 13 anos; poderíamos criar famílias. "Bebericando Beaujolais, Herzog torna-se severamente crítico do que considera os traços de personalidade germânicos, embora continue sentimentalmente ligado a suas raízes bávaras. Diz que sentiu uma intensa alegria quando o Muro de Berlim caiu, no final de 1989, mas acredita que em oito dias a população alemã tenha passado do estado de euforia para uma "cultura da reclamação". Esses queixosos, diz o diretor, "clamam para que o Estado os ajude" e são de uma linhagem diferente de sua mãe. Por exemplo, quando uma bomba atingiu uma casa vizinha em Munique, em 1944, e a cama de Werner, com dois anos, se encheu de poeira, ela imediatamente levou a família para uma aldeia nos Alpes da Baviera.Herzog diz que detestava cada segundo da escola. "Eu odiava tudo ali, meu ódio era tão profundo que chego a entender o massacre em Columbine (EUA)", em 1999, diz com franqueza.Herzog cresceu depressa, trabalhando à noite como soldador para financiar seu primeiro filme, em 1961, quando ainda era estudante. Viajou para a África pouco depois, onde enfrentou problemas com milicianos saqueadores. Por algum tempo quis ser esquiador profissional, até que um amigo teve um terrível acidente quando ambos estavam sós nas montanhas. "Mas, enquanto o sonho durou, foi como voar, seis segundos no ar em que você sai de sua humanidade." Seu filme de 1974 sobre o campeão de salto em esqui Walter Steiner transmite em parte essa sensação de liberdade.
Plantar uma árvore
Se tivesse de se identificar com alguma figura da história alemã, não seria um romântico ou um expressionista, mas o teólogo do século 15 Martinho Lutero. Cito uma frase de Montaigne, sobre querer morrer enquanto cuidava de seu jardim, que parecia adequada para um "workaholic" como ele. Herzog a rejeita com um resmungo, dizendo que tem uma citação muito melhor de Lutero. Quando indagado "O que você faria se o mundo desaparecesse amanhã num cataclismo?", Lutero teria respondido: "Plantaria uma árvore". Otimismo? "Absolutamente não." Desafio? "Não. É só uma resposta maravilhosa. "Herzog tem um apreço pelos ditados, que, segundo ele, nascem da longa experiência. "Os que assistem à televisão perdem o mundo", adverte, "e os que lêem o ganham". O autor de viagens Bruce Chatwin [1940-89], com quem ele teve "uma amizade cautelosa, mas muito substancial", citou Herzog com aprovação dizendo: "Turismo é pecado, caminhar é virtude" e o transformou em seu próprio lema no final da vida. Em seu leito de morte, Chatwin deu a Herzog sua mochila de couro surrada, e agora Herzog a leva consigo em suas longas caminhadas.
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