Resta-me em casa uma singela cópia do meu mais recente livro, Os homens também choram: histórias da nova masculinidade, editado em 2021 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Por ironia do destino, é um exemplar que autografei há muitos meses para oferecer a João Miguel Tavares, mas que, lamentavelmente, nunca cheguei a entregar-lhe. A julgar pela sua crónica mais recente (“Will Smith, a Ucrânia e a masculinidade tóxica”), é bem provável que não ficasse entusiasmado com a tese principal do livro: a de que é urgente libertar os homens da visão estereotipada que tanto os prejudica e às pessoas que os rodeiam, e convocá-los para assumirem as suas responsabilidades no combate à violência de género e na luta pela igualdade. Desde logo, porque João Miguel Tavares parece acreditar que as desigualdades de género são uma invenção feminista. Depois, porque vê na “masculinidade tóxica” um “ataque indiscriminado a todos os homens, já de si cada vez mais inseguros e ansiosos”.
Este é um equívoco que importa desfazer: não é o ser homem em si que é tóxico, mas sim alguns comportamentos que alguns homens podem adotar em resultado da forma como são educados socialmente. Esta masculinidade dominante (ou hegemónica, na terminologia de muitos autores) pode, de facto, ser destrutiva, e não apenas para as mulheres, eternizando as desigualdades, a violência e a opressão; também o é para muitos homens, aprisionando-os num modelo que os isola física e emocionalmente, e limita o seu pleno desenvolvimento.
João Miguel Tavares bem pode resumir esta realidade a um “absurdo”, mas importa que reflitamos sobre alguns factos: os homens são não só muito mais propensos a adotar comportamentos de risco (bebem mais, fumam mais e consomem mais drogas), como sofrem mais acidentes rodoviários, procuram menos cuidados de saúde e, por causa desses e de outros fatores, têm uma esperança média de vida bem inferior à das mulheres (em Portugal, quase seis anos menos). Têm também um risco de suicídio cerca de três vezes maior (7 em cada 10 suicídios em Portugal são cometidos por homens) e são não só quem mais mata, mas também quem mais morre em resultado de homicídios: cerca de 90% dos agressores e 90% das vítimas de homicídios a nível internacional são homens. Por isso são também, sem surpresa, os principais ocupantes de estabelecimentos prisionais.
No seu afã de negar as desigualdades de género, João Miguel Tavares dá outro tiro no pé: lembra que na Ucrânia, “como em todas as guerras”, os homens “estão a morrer de forma desproporcionada em relação às mulheres”. O que não escreve, porque talvez não ajudasse à sua tese, é que, ao longo da história, têm sido sobretudo os homens a iniciar os conflitos armados. A guerra (como também o mundo dos gangues, por exemplo) é um domínio maioritariamente masculino porque são os homens os grandes perpetradores de violência.
Assumir isto não é fazer um ataque indiscriminado a todos os homens, como escreve o cronista. Não é assumir que todos são violentos. Não é dizer-lhes que deixem de ser homens, mas reconhecer que podemos, como sociedade, criar modelos de masculinidade mais saudáveis e empáticos. Esta é ainda uma conversa difícil para muitas pessoas e será tão mais bem-sucedida quanto mais formos capazes de construir pontes para o diálogo ao invés de erguer muros.
Mas termos consciência destas nuances não significa ignoramos a realidade que está diante dos nossos olhos e que urge mudar. Se é verdade que a violência não é algo inato (ninguém nasce violento), é justo que nos questionemos sobre a forma como estamos a educar os nossos homens. A ideia de que “um homem de verdade” é forte, viril, dominante, defende a sua família e nunca fraqueja ou mostra vulnerabilidade é sobretudo uma construção histórica, social e cultural que tem pouco a ver com a nossa biologia e muito mais “com a imaginação humana”, como escreve Yuval Noah Harari.
Esse velho guião da masculinidade é o gatilho de grande parte da violência que existe no mundo. A boa notícia é que, se nada disto está inscrito no nosso ADN, então só depende de nós construir o mundo sonhado por Chimamanda Ngozi Adichie: um mundo onde todas as pessoas possam ser “mais felizes e mais honestas consigo próprias”. Até o João Miguel Tavares.
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