quinta-feira, 7 de setembro de 2023

A banalização da violência: o caso das touradas

Victor Barrio colhido mortalmente na arena
As touradas, como espetáculo de falta de empatia, tortura, prazer de ver sangue e sofrimento, humilhação e glorificação da morte, pode ter um efeito muito negativo nas crianças, tanto mais que quem promove a sua ida são os mesmos que lhes deveriam veicular sentimentos humanistas e solidários. O argumento da “tradição” é uma treta, e quem de direito deveria agir.
Em 1961, a filósofa Hannah Arendt foi cobrir o julgamento do nazi Adolf Eichman, acusado de crimes contra a Humanidade. Este foi declarado culpado, apesar de alegar inocência “por estar apenas a cumprir ordens”. Hannah Arendt revelou um indivíduo que, numa lógica burocrática e de carreira, cumpria rigorosamente as ordens superiores, sem qualquer análise crítica do Bem e do Mal. Zelo e eficiência, mesmo que isso implicasse infligir sofrimentos infindáveis.
Arendt concluiu que a falta de pensamento crítico levado ao limite, torna as pessoas acéfalas, acríticas e robotizadas, deixando que a violência e os aspetos mais maléficos do ser humano venham ao de cima, se banalizem e se inocentem através da repetição e da ausência de regras éticas e de punição.
É, pois, indesmentível que a empatia e a ética são fatores indispensáveis a uma não progressão dos instintos mais primários, entre os quais estão a violência, o desrespeito e a humilhação e aniquilação dos outros, sejam animais ou pessoas.
Já há muito tempo que a Ciência se debruça sobre esta questão, paralelamente ao estudo dos efeitos que a violência sobre seres humanos tem sobre as crianças (designadamente nos casos de violência doméstica).
Ser espectador ou agente de cenas de violência magoa, choca, fere. Se essa violência é mantida, recorrente, se quem a exerce são pessoas de referência (pais, líderes, figuras públicas) e se esses e outros modelos (designadamente a sociedade como um todo) aprovam e legitimam a violência, então só resta à criança um de dois caminhos: a raiva, a revolta e a luta (para as quais se sente impotente, minimizado, sem poderes, aumentando a frustração, a raiva e a vontade de vingança violenta) ou a adesão, a colaboração, a insensibilidade e, até, em muitos casos, cair, ela própria, na prática de violência, para a banalizar e se autoconvencer de que esse caminho e essas atitudes e comportamentos são, afinal, “normais e naturais”, despojando-os de qualquer classificação ética negativa – uma forma de “normalizar” o que até aí era demasiado horrendo e intolerável.
O caso das touradas remete-nos para uma análise factual e científica, para lá de questões de gosto ou de moral. A ONU tem-se mostrado empenhada na abolição das touradas porque está mais do que provada a relação entre a crueldade contra animais e a violência contra humanos, não apenas relativamente ao impacte traumático da visualização, como o incitamento e a habituação à mesma – a sua banalização. Afinal, há uma ambiguidade entre os valores transmitidos pelos adultos e pela sociedade, e depois a prática contrária fomentada pelos mesmos.
Assim, a abolição das touradas, ou pelo menos a interdição às crianças do visionamento e da prática do toureio, não visa apenas a defesa dos touros, mas também a defesa das crianças e, também, dos cavalos e dos adultos envolvidos.
Para mais, há um conjunto de epifenómenos que tornam a violência dissimulada e mal interpretada, ao contrário da que uma criança assiste num filme ou desenho animado: é violência real, desnecessária, não vital ou acidental e propositada e intencional, para gozo e para gáudio de alguns, sendo que, no caso das crianças, quem as leva ao que designa por “espetáculo” são as mesmas pessoas que, no quotidiano, deveriam dar a noção de uma educação para a paz.
A primeira reação de uma criança ao ver um animal a sangrar, porque alguém o picou ou lhe espetou uma bandarilha, é de rejeição, desconforto e medo. A evolução relacional entre as crianças e os animais já não permite este tipo de espetáculos, pelo que eles encerram de agressividade, injustiça e dessensibilização relativamente ao fenómeno mais deletério das sociedades humanas: a violência.
Também as lutas de cães ou de galos são proibidas e socialmente inaceitáveis. Também as cenas de pancada nos recreios são admoestadas. Com cada bandarilha, estocada ou humilhação do touro, que se amplia com o seu progressivo enfraquecimento, e finalmente com a morte ou a sua antecipação, a criança sente-se profundamente mal; a ausência de significado (argumentar com “tradição” não é motivo, porque então estaríamos a legitimar práticas contra a liberdade das mulheres ou minorias étnicas, arruaças, bebedeiras com pancadaria, e tanta coisa mais, como a violência doméstica ou a execução de um amante, ou a obrigação de casar virgem e designar por “bastardos” os filhos concebidos fora do matrimónio!) agrava a situação. A maioria das crianças desenvolve afetos muito especiais com animais, representados até nos peluches, nas quintas pedagógicas, na alegria que um animal provoca, designadamente um cão, um gato… ou um touro.
Finalmente, gera-se desconfiança relativamente aos adultos que as levam a este tipo de visionamentos, os mesmos adultos que seria suposto protegerem-nas, já sem falar no culto marialva e de superioridade antropológica que impera no meio tauromáquico.
Se não é bom “humanizar” os animais e se é conveniente respeitar a nossa condição de espécies diferentes, a visão de que podemos pôr e dispor da Natureza, dos animais e das plantas, e do planeta em geral é errada. São muito poucos os países onde as touradas são toleradas ou admitidas, e mesmo em Portugal, os “concelhos livres de touradas” são uma imensa maioria. Parabéns a estes.
A pediatria e a psicologia descrevem as reações das crianças como sofrimento, pena do touro, injustiça, perplexidade perante as reações histriónicas dos espectadores, confusão por a música (uma coisa alegre) acompanhar a progressiva tortura do animal (a charanga só começa a tocar quando o touro já foi “suficientemente” espetado), a confusão entre o belo das cores e o amargo da violência, o sangue e tudo o mais, o que leva a um grande desconforto físico e psicológico. O espetáculo não acaba quando a criança sai da arena, pois as imagens, os sons e, sobretudo, os sentimentos continuam na sua mente a metabolizarem-se, seja em sofrimento, seja – e voltamos a Hannah Arendt – em banalização da violência.
A exposição repetitiva à violência é diretamente proporcional ao efeito traumático, num mecanismo de impregnação que pode levar a adição –o fervor entusiasta que os aficionados têm (que os leva a argumentações quase patéticas e surreais em defesa das “corridas”) estará seguramente ligado a este mecanismo de dependência do sadismo, da crueldade e da humilhação do animal, ainda mais porque dentro de um fenómeno grupal e anónimo, levando a uma enorme produção de cortisol e adrenalina, hormonas associadas aos fenómenos aditivos e agressivos.
Uma sociedade que se diz evoluída tem de acabar com as touradas. São múltiplos exemplos, em Portugal e noutros países (a Catalunha acabou com as touradas, disse-se que ia haver um escândalo e nada se passou de especial). O que tem de haver, sim, é coragem política do Governo, da AR e das autarquias, e aqui, os interesses em votos são grandes, mas nada têm a ver com a tourada em si. É pena, e como pediatra, pai e cidadão, lamento, mas tenho a esperança de que, com lei ou sem ela, o humanismo se venha a impor.

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