sábado, 4 de maio de 2024

A intifada que Israel tem de encarar. E o Velho Mundo também


Alexandra Lucas Coelho
"1. Eu ia começar este texto pela Califórnia. Só que ontem à noite o meu amigo W. escreveu a dizer que tinha conseguido sair de Gaza. Meio morto mas incrivelmente vivo, ao fim de sete meses de um horror sem precedentes no nosso tempo. Contarei adiante o que ele quiser contar, a partir do Egipto. Para já, vai dormir, ser tratado e reencontrar a filha mais nova, que conheci pequenina há 19 anos e agora terá o pai na sua festa de casamento. 
2. Quando W. estava prestes a atravessar o Sinai, no longo êxodo de Gaza, muitos milhares de estudantes, ainda mais novos do que essa filha dele, estavam acampados em mais de cem campus por toda a América, num apoio também sem precedentes à Palestina, contra a participação dos EUA na guerra e para exigir às universidades o fim dos apoios a Israel. Um dos maiores acampamentos era o da UCLA (Universidade da Califórnia, em Los Angeles). E de repente, na terça-feira à noite, véspera de feriado, jovens a 12.200 quilómetros de Gaza, com vidas mais ou menos confortáveis, estavam ali numa barricada, a serem atacados por uma milícia pró-Israel com bastões, ferros, foguetes, objectos pesados, gás-pimenta. Não era um confronto entre duas facções. Foi um raide bélico contra um acampamento pacífico. Dezenas de estudantes ficaram feridos. Há inúmeros vídeos com os atacantes a destruir e espancar. Dois dias antes, provocadores já tinham desafiado o acampamento, muitos falando hebraico. Havia bandeiras israelitas. 
Na terça, os atacantes foram mascarados, mas não há dúvida de que eram pró-Israel. “Em 33 anos na UCLA, nunca vi nada tão aterrorizador”, escreveu David N. Myers, “Distinguished Professor” de história e cultura judaica, no Forward, jornal com mais de cem anos, feito por judeus americanos. Um “falhanço total da universidade, da cidade de L.A. e do estado da Califórnia”, porque os atacantes agiram “com impunidade durante três horas”, apesar de a UCLA ter a sua própria força policial e de a polícia de L.A. estar algures no campus. Havia sinais de perigo desde domingo e nada foi feito para evitar a escalada. Então, além de “condenar a violência chocante”, a universidade tem de “investigar como os manifestantes antiguerra foram deixados sem defesa durante horas”, aponta Myers. Mas não só: “Tornar claro que exprimir oposição à guerra em Gaza é legítimo, que anti-semitismo e islamofobia não têm lugar no campus, e que a retórica irresponsável sobre o perigo que representariam manifestantes pacíficos contribuiu para horror”. Com a força de ser quem é, Myers desafia ainda os líderes da comunidade judaica a denunciarem atacantes que agem em nome de uma suposta protecção dos estudantes judeus. Quando há incontáveis judeus em protesto nos campus, e eles mesmos foram alvos do ataque de 30 de Abril. No dia seguinte, a UCLA ainda viveu a brutalidade do desmantelamento policial dos acampados. Com balas de borracha: sim. Com 200 estudantes detidos. Ao todo, vamos em mais de dois mil detidos desde que a repressão policial na Universidade de Colúmbia acendeu o levante por todo o país. Toda a América do Norte, já, porque nos últimos dias sucederam-se acampamentos no Canadá, e também na Universidade Autónoma do México, que tem memórias vívidas de repressão. Como Colúmbia e outras universidades têm. Gaza é o novo Vietname nos campus da América, desta vez em directo. Esta geração vê o horror nos seus telefones há sete meses, e viu agora o que a polícia fez a estudantes. E professores. 
Eu vi filósofas de cabelo branco serem atiradas ao chão, imobilizadas à bruta, levadas polícia, na universidade de Emory. Não só milhares de estudantes foram feridos, detidos, como suspensos, impedidos de assistir às aulas, ameaçados de expulsão, ou banidos, mesmo. E, ainda assim, estão determinados a não parar. A, por exemplo, mostrar um cartaz com a palavra genocídio na cara de responsáveis de Harvard. Sim, têm coisas a perder, e já pagaram um preço, físico e académico. É o próprio futuro da universidade que está em risco longo ensaio de Louis Menand há dias na New Yorker). Chamar a polícia para reprimir estudantes no campus é uma linha vermelha. Ser presidente numa universidade e marioneta de um tribunal público é incompatível. Tenho amigos em várias universidades americanas. 
Um deles, João José Reis, dos mais importantes historiadores brasileiros, está há meses numa visita a Princeton (depois de temporadas noutros campus, desde há décadas). “Essa é a guerra da vez, e é uma guerra também americana, pelo nível de engajamento dos EUA”, escreveu-me, quando perguntei se gostaria de dizer algo. “Já tínhamos lido e visto o jornalismo daqui adoptar essa atitude entre autocondescendente e covarde, mas ver acontecer nas universidades é chocante, por se apresentarem ao mundo como o paraíso da liberdade e do pensamento crítico. A máscara caiu. Prevalece o poder dos doadores pró-Israel, apesar de muitas universidades terem dinheiro por anos e séculos. Então vale tudo, vale ter seus alunos ameaçados de expulsão e também seus professores, apesar de empregos teoricamente estáveis. Vale as universidades se calarem e até aplaudirem a violência e a prisão.” Enquanto isso, duas universidades tão prestigiadas como a Rutgers e a Brown mostraram como era possível dialogar com os estudantes, e os acampamentos serem desmontados pacificamente. Na Rutgers, os estudantes conseguiram, entre outras vitórias, bolsas para jovens de Gaza. Oito em dez pontos aceites, num clima de alegria. E a universidade aceitou debater os restantes, incluindo o desinvestimento em Israel. Contraste total entre as imagens ali e a militarização em Colúmbia ou na UCLA. Ou seja, havia boas alternativas a chamar a polícia. Outro amigo, Pedro Schacht Pereira, está como visitante em Yale, e em contacto permanente com a Ohio State University, onde éprofessor Æxo, tem um filho estudante e a polícia também actuou. Aí, raparigas foram forçadas a tirar o hijab. Professores e pais questionaram a universidade. Entretanto em Yale, um provocador de megafone, com um discurso de ódio contra os palestinianos, insultava os manifestantes. Pedro não testemunhou qualquer resposta anti-semita, ao contrário, uma organização empenhada em impedir que isso acontecesse. Eu vi centenas de imagens e relatos de várias universidades. E vi também um provocador pró-israelita de megafone, desta vez na Califórnia, que dizia: “Tirem os vossos hijabs e arranjem um emprego! Vocês são gordas, feias e falidas.” Islamofobia desbragada. Como dizer “Voltem para a Polónia” é anti-semitismo, e li no Haaretz que isso aconteceu num campus. Também li, e foi amplamente noticiado na imprensa americana, que a universidade de Colúmbia baniu um estudante do campus porque ele tinha dito “os sionistas não merecem viver”. Quando dei uma primeira olhada nas notícias, pensei que ele tinha dito aquilo agora no campus. Lendo mais, ficávamos a saber que era um post no Instagram. Feito em Janeiro. De que ele se retractara. Mas no retrato geral que me chegava de Israel era como se os campus da América estivessem a gritar ao megafone que os sionistas não mereciam viver. A palavra campus passara a estar atrelada à palavraanti-semitismo. É a forma favorita e Israel não pensar no seu próprio problema. Estava resolvido: o que se passava nos campus da América era anti-semitismo. Mas esta intifada também é contra isso: a exploração do anti-semitismo. O que está a acontecer nos campus da América não é pequeno, e não é anti-semitismo. Embora haja anti-semitas por toda a parte, como há racistas por toda a parte, nenhum mais importante que outro, todos criminosos. E todos para levar a sério. O anti-semitismo mata, como os judeus sabem. Incluindo os que estão nos campusda América agora a lutar pela vida. O futuro dos judeus não está no governo de Israel. Está na mão deles." (este texto continua amanhã)

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