terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Negócio das barragens: novos dados reforçam a estranha intervenção do Estado



Na sequência da entrevista do vereador da Câmara Municipal de Miranda do Douro ao Expresso do passado fim de semana, a história que apresentamos de seguida revela o modo como duas instituições fundamentais do Estado português podem aparentemente desviar-se da sua função de servirem o interesse público e a legalidade. Perante a informação disponível, é uma história muito simples, apesar de nos pretenderem apresentá-la como complexa, pelo que amavelmente convidamos o nosso leitor a acompanhá-la de seguida.

A lei estabelece que devem pagar Imposto Municipal Sobre Imóveis (IMI) todos os “edifícios e construções” que “façam parte do património de uma pessoa singular ou coletiva” (artigo 2.º do Código do IMI).

Os edifícios e construções das barragens de Miranda do Douro, Picote e Bemposta, que foram recentemente vendidas pela EDP, pertenceram sempre à titularidade da concessionária, a EDP, que os vendeu à Movhera. Essa titularidade está expressa no contrato de concessão (cláusulas 6.º e 36.ª) e nas suas sucessivas adendas, incluindo aquela que foi realizada em 2020, quando foi realizado o negócio.

Do mesmo modo, esses imóveis também sempre estiveram inscritos no balanço da EDP, que amortizou também o seu custo de construção e, consequentemente, lhe permitiu evitar pagamento de Impostos sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC).

Assim, não há dúvidas que, “fazendo parte do património” da EDP, esses imóveis estão sujeitos ao pagamento do IMI.

A verdade, porém, é que nada pagam, nunca pagaram. Perguntará o leitor, mas porquê?

A Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que no negócio das barragens teve um comportamento estranho, porque autorizou um negócio contendo uma aparente artimanha de evasão fiscal, afirma repetidamente que aqueles imóveis integram o cadastro de bens do domínio público e, como tal, não estão sujeitos ao IMI. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) parece aceitar esse entendimento, apesar da sua evidente ilegalidade.

Na verdade, note-se que a APA não tem competência para declarar quais os bens que integram o domínio público, nem para organizar e gerir o respetivo cadastro. Quem tem essa competência é a Direção Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), a quem curiosamente parece que ninguém perguntou nada até agora, nem a APA nem, estranhamente, a AT, que com a DGTF integra o mesmo Ministério das Finanças (MF). Sabe-se agora que a DGTF informou por escrito que aqueles imóveis não constam desse cadastro; ou seja, não pertencem ao domínio público, o que é uma evidência.

É, portanto, do conhecimento geral que os edifícios e construções das barragens de Miranda do Douro, Picote e Bemposta são privados, porque eles integram o ativo da EDP e da atual Movhera. Aliás a titularidade dos bens está definida no contrato de concessão a favor da concessionária (EDP e atual Movhera).

Como se isso não chegasse, note-se que os bens do domínio público não podem ser transacionados e é crime a sua alienação. Ora se esses imóveis foram transacionados duas vezes no negócio da venda das barragens, da EDP para a Camirengia e desta para a Movhera, como é do conhecimento geral e consta dos documentos do negócio, é porque, obviamente, são do domínio privado e não do domínio público.

O comportamento da APA neste caso específico adensa a estranheza acerca do modo como interpreta o interesse público, do qual jamais de devia desviar, pelas que nos parecem legitimas as seguintes quatro questões, para as quais seria importante ter resposta. Por que motivo a APA:

(i) pratica atos em matérias que não são da sua competência, quando ainda por cima tudo leva a querer que ilegais?

(ii) informa que os imóveis são do domínio público e ao mesmo tempo, através dos mesmos dirigentes, autorizou expressamente um negócio onde esses imóveis foram transacionados duas vezes, sabendo que a transmissão de imóveis do domínio público é ilegal, nula e constitui um crime?

(iii) não pede a declaração de nulidade do negócio, se é verdade que houve duas transmissões de imóveis do domínio público – EDP para a Camirengia e Camirengia para a Movhera?

(iv) não denuncia esse crime ao Ministério Público?

Também o comportamento da AT é aparentemente muito estranho. Na verdade, podemos perguntar-nos por que motivo a AT:

(i) não aplica um despacho da sua Diretora Geral, de dezembro de 2015, que nunca foi revogado e, portanto, está em vigor, onde decidiu, expressamente e muito bem, que os imóveis das barragens, mesmo que implantados em terrenos do domínio público devem pagar o IMI, nos casos em que estiverem inscritos no balanço das concessionárias, como acontece neste caso?

(ii) não pergunta se os imóveis constam do cadastro de bens do domínio público à entidade competente, que é a DGTF, e decide perguntar a uma entidade incompetente em razão da matéria?

(iii) não usa os seus poderes de averiguação dos factos sujeitos a imposto, como a lei lhe impõe e se alheia dessa averiguação?

(iv) não acede ao balanço das concessionárias, que está à sua disposição, para verificar que os imóveis estão sujeitos ao imposto?

(v) ignora os contratos de cisão e de fusão, que são do conhecimento geral e por via dos quais esses imóveis foram transacionados?

(vi) ignora o contrato de concessão e as sucessivas adendas, onde está estabelecida, de forma cristalina, a titularidade daqueles imóveis na EDP?

A Câmara Municipal de Miranda do Douro, como credora do IMI, apresentou à AT um requerimento circunstanciadamente fundamentado, onde demonstra que o imposto é devido e deve ser liquidado. Perante esse trabalho exaustivo, a AT decidiu ignorá-lo, violando a lei que a obriga a apreciar todas as petições e perguntou de novo à APA se mantém o seu entendimento de que os imóveis integram o cadastro de bens do domínio público, quando a questão deveria ter sido colocada à DGTF.

Com a APA respondeu que sim, pode dizer-se que a AT se recusa a apreciar os factos que provam que o IMI é devido. E sendo assim, esta recusa viola o dever legal de investigação da evasão fiscal, que impende sobre a AT. Perguntamo-nos: Porquê?

Caro leitor, não tendo a AT, estranhamente, perguntado à DGTF se aqueles imóveis integram o cadastro de bens do domínio público, fê-lo a Câmara Municipal de Miranda do Douro. A resposta foi concludente: A DGTF declara que nenhum dos imóveis que compõem as barragens consta do cadastro dos bens do domínio público e também não constam do cadastro dos bens do Estado.

O estranho comportamento da AT e da APA, a “descoberta” de que ambas se baseiam numa aparente falsidade, associadas ao que já sabíamos de que o anterior Ministro do Ambiente e Ação Climática (MAAC) autorizou um negócio envolvendo um esquema de aparente evasão fiscal, para o qual estava avisado e a perseguição disciplinar movida contra cidadãos que alertaram para tal, antes e depois do negócio, creio que, no mínimo, mostram que algo precisa de ser explicado a todos os portugueses.

A menos que tudo seja claramente explicado, provando o contrário do que parece ser evidente, a aparente articulação entre a AT e a APA sugere que ambas as instituições se têm amparado uma à outra, num jogo de espelhos, para esconderem e iludirem o que parece ser a verdade subjacente aos factos. Mas mais, como a APA depende do MAAC e a AT depende do MF, será que, até prova em contrário, não podemos pensar também que alguém as articula num jogo de secretaria destinado a impedir a aplicação da lei? E se assim for, quem será e por que o fará?

Por isso, deixa-se ao juízo dos leitores a avaliação acerca de qual o tipo de interesses que a APA e a AT estão a servir, porque, pelas Terras de Miranda (mas não apenas), não se consegue vislumbrar que seja o Interesse Público, como é suposto ser num Estado de Direito. Creio, por isso, que todos estamos de acordo que é esta assunto de tal modo relevante que ainda precisa de ser cabalmente esclarecido.

Em 2020

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