Na entrevista desta semana à TVI, Rui Rio esclareceu o seu acordo com a extrema-direita: o líder do PSD concorda mesmo com as quatro propostas feitas pelo Chega para apoiar o Governo da direita. Ao mesmo tempo que declarava que um Governo liderado por si “nunca dependerá da extrema-direita”, Rio adotava já as categorias do Chega na descrição e classificação da realidade. Reagindo com nervosismo às perguntas dos jornalistas, o momento não deixa de ser impressionante pela prova de fraqueza: Rio não apenas depende do apoio do Chega nos Açores, como reproduz os termos de debate escolhidos pela extrema-direita sobre a pobreza e a sociedade.
Os pontos negociais de Ventura, já se sabe, são atoardas retóricas sem qualquer credibilidade nem concretização: “diminuir a subsidiodependência”; um “gabinete contra a corrupção”; “diminuir deputados” (decisão que nem depende do Parlamento açoriano); “aprofundar a autonomia”. Confirmam, no fundo, o quanto aquele se move por propaganda e não por propostas, por oportunismo e não por qualquer coerência programática, permitindo-se dar o dito por não dito em troca da inscrição de alguns slogans no programa do governo açoriano. Mas o facto de o PSD, através do seu líder, reproduzir nas suas intervenções esses termos revela uma desorientação que é também uma reorientação do posicionamento do partido.
O caso do RSI é um clássico dessa retórica, que contrasta com a realidade que os números traduzem. Num arquipélago em que deveria ser central o combate à pobreza (articulando apoios sociais com investimento em emprego, educação, habitação…), o PSD aceitou substituí-lo retoricamente pelo combate aos pobres. Como se a redução administrativa de um apoio social que tem o valor de 86 euros por mês nos Açores (sim, é este o valor médio do RSI no arquipélago, por beneficiário, o mais baixo de todo o país, já agora) resolvesse alguma coisa além de aumentar o sofrimento e a privação absoluta dos mais miseráveis. Com várias agravantes. Cerca de um terço dos beneficiários do RSI nos Açores são crianças menores de idade, que não poderiam em nenhuma circunstância trabalhar. Uma boa parte dos beneficiários adultos são mulheres, muitas delas cuidadoras informais, que só por insulto se pode dizer que “não trabalham”, mesmo que não tenham emprego nem remuneração pelos cuidados que prestam a crianças, idosos e pessoas dependentes. E quase 10% dos beneficiários do RSI tem rendimentos do trabalho, mas recebe tão pouco nos biscates precários, nos empregos sazonais ou nas tarefas pontuais que encontra que continua a precisar do RSI – sobretudo, para que os seus filhos não passem fome.
Ouvimos a Rui Rio alguma palavra sobre investimento em educação, reconhecimento das cuidadoras ou mudança de paradigma da economia local? Nada. Zero. Só o preconceito, a desinformação e a culpabilização dos pobres. Como a extrema-direita, nenhum beliscão nos poderes e nas elites económicas que vivem, essas sim, de uma cultura de dependência em relação ao Estado, numa economia em que, até pela insularidade e pela condição ultraperiférica da região, não há praticamente nenhum setor (da agricultura ao turismo ou à indústria) que não receba apoios públicos.
Para quem é do Porto, talvez a entrevista de Rio tenha sido menos surpreendente. A retórica sobre os “subsidiodependentes” foi uma constante nos seus mandatos à frente da Câmara, usada contra os pobres e contra os trabalhadores das artes. Rio mandou expulsar moradores do São João de Deus, do Cerco, do Bacelo e demoliu bairros pobres com o argumento da “luta contra a droga”, mas o negócio da droga ficou intocado e redução de riscos nem vê-la (ainda hoje se vivem as consequências dramáticas da irresponsável demolição do Aleixo e da ausência de políticas públicas nesta área, que fez migrar o tráfico, descontroladamente, para a Pasteleira). Nas artes, procurou silenciar os coletivos artísticos, acabou com os apoios aos criadores e com a agenda cultural, concessionou a La Féria o teatro municipal – ao mesmo tempo que canalizava milhares de euros do orçamento municipal para financiar corridas de carros e de aviões. Abriu guerra aos jornais – Público e Jornal de Notícias – pedindo a demissão de jornalistas e utilizando o site da Câmara para intimidá-los. Alienou património público como nunca fora feito. Tudo isto foi acompanhado com pormenores de cinismo, como a célebre viagem de barco pelo rio Douro para abrir uma garrafa de champanhe com os convivas enquanto as torres do Aleixo eram demolidas e, em terra, mulheres gritavam de raiva ao ver a sua casa demolida, homens choravam com o espetáculo e as crianças assistiam atónitas ao que acontecia.
Rio conta, até agora, com um quase silêncio nas estruturas do PSD (com honrosas exceções como a de Moreira da Silva), com o apoio excitado de liberais como João Miguel Tavares (para quem os princípios democráticos devem ser interrompidos face ao objetivo de chegar ao poder) e com o entusiasmo da ala radical dos apoiantes de Passos Coelho (sempre de olhos no pote). Resta saber se, aceitando as categorias de pensamento do Chega sobre a perseguição aos pobres, não se demarcando das tiradas racistas de Ventura (como a desta semana), alienando os votantes do centro político e legitimando a extrema-direita como parte de uma solução comum, Rio não estará mesmo a ditar a sua própria sentença. É que tudo isto não faz um projeto. Faz um buraco.
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