Este texto reúne as ideias que apresentei em 8 de Maio de 2020 na semana virtual do Departamento de Ciência e Tecnologia da Universidade Portucalense, onde procurei apontar algumas mudanças chave a imprimir à educação em Portugal na era pós-Covid-19. Nele abordo a autonomia das escolas, a sua futura dimensão online, a apropriação cultural do telemóvel para a educação e o papel da televisão como elemento chave de uma desejável educação não escolar.
1. A autonomia das escolas
Antes desta pandemia, o relatório TALIS 2018, publicado em 2020, colocava a autonomia dos professores portugueses na posição mais baixa de todos países da OCDE. Apesar dessa falta de autonomia, um mês depois da transição forçada para o espaço online, as aulas das escolas portuguesas, praticamente desligadas do Ministério da Educação e entregues à iniciativa dos professores, funcionavam acima de todas as expectativas.
Infelizmente, muitos alunos não tinham computadores em casa nem acesso à Internet e os servidores da maioria das escolas eram antiquados e vergavam sob a carga das transferências. Mesmo assim, os professores não baixaram os braços e ao fim de alguns dias o tráfego escolar online tinha atingido níveis nunca vistos. Entretanto, professores, escolas, pais, autarquias e algumas empresas desdobravam-se em iniciativas para levarem PCs, tabletes e conectividade aos alunos isolados, que os professores tentavam incorporar no movimento.
E no país vizinho, o que terá acontecido? Em Espanha, segundo afirmava Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE numa entrevista ao El País, os esforços que o governo investiu na transição para a distância esbarraram frontalmente contra o desinteresse da maioria dos professores. Desinteresse esse agravado pela falta de tradição de colaboração e partilha de soluções pedagógicas entre os professores, um indicador onde a Espanha pontua muito abaixo da média dos países da OCDE.
Em Portugal, do lado de cá da fronteira, as redes sociais fervilhavam de colaboração, com os professores a convergirem e colaborarem num conjunto restrito de grupos online, alguns dos quais adquiriram em poucos dias dezenas de milhares de membros.
Como se explica este prodígio português? O que aconteceu foi que, ao reduzir a pesada linha de comando que ligava o Ministério da Educação às escolas, a pandemia devolveu aos professores uma iniciativa que há muito lhes tinha sido retirada e libertou a sua criatividade e talento para projetos pedagógicos de escola desobrigados de estreitas diretrizes vindas “de cima”.
A moral desta experiência é que seria uma tragédia para a educação em Portugal se o espantoso capital de iniciativa e energia dos professores, que este período de emergência revelou, não fosse posto de imediato ao serviço de uma nova visão da autonomia das escolas em Portugal.
A primeira evidência que este período de pandemia revelou para a educação em Portugal foi, assim, a da necessidade de uma autonomia inteiramente nova para as escolas portuguesas.
2. Uma dimensão online para as escolas
As escolas nacionais, tal como as escolas de quase todo o mundo, não estavam preparadas para a súbita transição para a distância. Compreende-se, por isso, que tenham tido grande dificuldade em adaptar-se.
Não se compreenderia, no entanto, se agora que se prevêem novos surtos e se antecipam novas pandemias e catástrofes climáticas, as instituições continuassem a não fazer nada e, quando as catástrofes surgissem, alegassem que não estavam a contar com elas. Errar é humano, mas cometer duas vezes o mesmo erro é incompetência.
Justifica-se assim que as escolas, tirando partido da experiência de terreno que estão a desenvolver neste momento, comecem a construir desde já o seu prolongamento online permanente, que possa ser posto à carga plena se, e quando, vier a ser necessário.
Será de esperar, assim, que cada escola, ou cada agrupamento, passe a ter uma infraestrutura tecnológica de gestão de aprendizagem (LMS), uma seleção de tecnologias regularmente atualizadas, um repositório crescente de conteúdos, um acervo crescente de práticas, e toda uma cultura de partilha entre professores, entre professores, alunos e encarregados de educação, e entre escola e sociedade.
Daqui resulta a segunda evidência para a educação revelada por este período de pandemia: a necessidade de constituir e explorar, em cada escola ou agrupamento, uma infraestrutura tecnológica sustentável e um padrão de práticas regulares que prolonguem a escola, de forma permanente, para o espaço online.
Este prolongamento seria o embrião de uma unidade de ligação da escola com a sua comunidade interna e externa, de reforço da sua imagem institucional e, acima de tudo, de educação online e de b-learning, a usar sempre que desejável.
No âmbito dessa presença online, seria importante que a escola começasse a desenvolver as competências dos seus docentes para ensinarem online, não em situações improvisadas, de emergência, mas de forma sustentada e com a qualidade e profissionalismo que o mundo de hoje exige e a competência pedagógica dos educadores experimentados coloca ao seu alcance. Um bom professor do século XXI deverá, idealmente, ser um bom professor tanto presencialmente como online.
3. As tecnologias na educação
Existem duas tradições da utilização das tecnologias nas escolas em Portugal: a dos computadores pessoais e a dos equipamentos configuráveis. A tradição dos computadores pessoais remonta ao início dos anos oitenta e privilegia o uso dos computadores na perspectiva do utilizador. À medida que as tecnologias evoluíram, esta tradição estendeu-se para a exploração online e nos últimos anos começou a integrar também o recurso a tabletes.
A tradição dos equipamentos configuráveis, mais recente, baseia-se no recurso a computadores em circuito impresso, ou micro-controladores, como o Arduino, Raspberry Pi, BeagleBone, Nanode e outros. Estes equipamentos são a base de riquíssimos contextos de aprendizagem baseada em projetos, de criação de soluções informáticas e robóticas e de aprendizagem da programação.
O telemóvel manteve-se conspicuamente afastado desta realidade. No ano 2000, começaram a surgir telemóveis nas mãos dos alunos, e a sua presença nas escolas tornou-os de imediato em elementos de perturbação e conflito. Em muitas escolas, passaram, mesmo, a ser proibidos. Com a emergência dos smartphones, surgiram alguns projetos interessantes em escolas portuguesas e a UNESCO publicou, em 2013, um estudo que incentivava o seu uso na educação, mas as limitações de que ainda padeciam não estimularam a sua adopção para utilizações pedagógicas regulares.
Acontece que, nos últimos dois anos, as características técnicas e os preços dos smartphones transformaram radicalmente o seu potencial como instrumentos de aprendizagem para os tempos que vivemos. É hoje possível adquirir por cerca de 200 €, ainda sem desconto de quantidade, smartphones com câmaras de alta qualidade, ecrãs de 6.3”, 6 GB de RAM e memória de 128 a 256 GB. Por outro lado, a sua utilização pela faixa etária escolar tornou-se quase total. Segundo a Marktest, citada pela revista Marketeer em agosto de 2018, a utilização de smartphones superava os 99% junto dos jovens portugueses entre os 10 e os 24 anos.
Um smartphone serve, hoje, para tudo. É livro, dicionário, enciclopédia, biblioteca, câmara fotográfica, laboratório fotográfico, câmara de vídeo, estúdio de cinema, sala de aula, oficina de artes gráficas, digitalizador de texto e imagem, redação de jornal, sala de reuniões, museu, calculadora científica e gráfica, ambiente de cálculo matemático, sistema de gestão de bases de dados, processador de texto, folha de cálculo, instrumento de comunicação, equipamento de medida, simulador, coletor de dados biológicos, identificador de plantas e animais, instrumento de diagnóstico de doenças, mapa, atlas, bússola, instrumento de navegação … A lista é interminável!
Uma criança de catorze anos que viajasse para um planeta desconhecido levando no bolso um telemóvel destes, e que o usasse nas funções acima mencionadas, seria vista como um prodígio. Uma criança dos nossos dias, com um telemóvel destes na mão, é, de facto, um prodígio … se souber utilizá-lo. Mas saberá utilizá-lo em todas essas funções? Se sabe, quem a ensinou? Certamente que não foi a escola!
Por outro lado, se não foi a escola, haverá crianças mais favorecidas que se transformam em prodígios porque alguém as ensinou, e haverá crianças menos favorecidas que não serão prodígios porque a escola não as ensinou. A simples existência de telemóveis no mundo de hoje, gostemos deles, ou não, pode criar desigualdades gritantes se a escola lhes voltar as costas.
Outro aspeto a ter em conta é o da cibersegurança. Não caberá à escola desenvolver as competências essenciais das crianças para esta dimensão chave do mundo de hoje? Se sim, fará algum sentido a escola ensinar as práticas do uso do telemóvel sem o integrar plenamente na sua atividade? Se não integrar o telemóvel nas suas práticas, como é que a escola ensinará cibersegurança? Fazendo palestras e projeções de slides?
O que se torna hoje evidente é que o telemóvel se transformou no mais poderoso instrumento pessoal de ligação entre o ser humano e o mundo. Por isso, ou a escola inscreve o telemóvel nas suas práticas, ou corre o risco de, como escola, reduzir a sua relevância para o mundo. Por muito que nos custe reconhecê-lo, o acesso ao mundo de hoje está cada vez mais no telemóvel e cada vez menos nas práticas da aula tradicional.
E os computadores? Ao contrário do que aconteceria com o telemóvel, os computadores são usados nas escolas como meros instrumentos. Não promovem, nem poderiam promover, uma interiorização cultural porque não se inscrevem em práticas sociais regulares, intensivas e permanentes. Ora, a História da Humanidade mostra-nos que os seres humanos se mantiveram primitivos enquanto se limitaram a explorar as tecnologias como instrumentos, sem as consolidarem em torno de práticas socioculturais plenas, como as que, só mais tarde, conduziram à descoberta da agricultura e das indústrias.
O único instrumento susceptível de apropriação cultural plena, porque é pessoal e se integra na vivência do dia-a-dia, onde quer que estejamos, é o telemóvel. Em boa verdade, o telemóvel é o único instrumento pessoal universal para a literacia digital, quer seja usado por crianças, por adultos ou por pessoas idosas.
Aliás, não deixa de ser irónico pensar que muitas das dificuldades que vivemos nestes tempos de transição forçada para o espaço online teriam sido evitadas se as crianças das nossas escolas já fossem os tais prodígios de telemóvel no bolso. Mesmo que alguns dos seus equipamentos fossem limitados, e as condições de acesso problemáticas, uma compra maciça de smartphones e de contas de dados teria sido muito mais fácil e económica do que a aquisição caótica de computadores pessoais cujas manutenções virão a ser problemáticas.
Daqui resulta mais uma evidência para a educação, tornada clara por este período de pandemia: a importância de encetar um percurso gradual de apropriação cultural do telemóvel para a prática pedagógica.
Esta apropriação não será fácil nem rápida. Envolve um projeto muito ambicioso de renovação dos currículos e das práticas escolares em torno do uso do telemóvel. Em alguns domínios do saber, como a Matemática, há muito trabalho já feito, no âmbito de soluções poderosas, como as do Wolfram Alpha. Noutros domínios, há algum trabalho internacional valioso, que apenas tem de ser transposto para português. Mas noutros domínios haverá que começar do zero, uma tarefa difícil, mas também aliciante porque abre perspectivas para inovar a nível internacional.
4. Brevemente numa televisão perto de si
As sociologias da inovação dizem-nos que em sistemas sociais complexos onde a diversidade dos atores cresce e a interação entre atores se intensifica, a tendência para emergirem fenómenos de inovação tende a aumentar. O lançamento da iniciativa #EstudoEmCasa, uma variação da extinta Telescola, parece configurar um destes fenómenos. Acolhida de forma globalmente positiva, não apenas pelos alunos a quem se destinava, mas também pelos pais e avós, o modelo do #EstudoEmCasa pode vir a ser um contributo relevante para uma educação que transcenda o meio escolar.
Num país onde a televisão penetra por todo o lado, mas onde existem grandes desequilíbrios no acesso à educação por vários sectores da sociedade, o recurso a um espaço público de educação televisiva de qualidade poderia contribuir de forma transformadora para a melhoria da qualidade de vida de várias populações. Desde logo, para preencher um espaço deixado vazio no que se refere à literacia da leitura e da escrita, sobretudo para os mais idosos, mas também para auxiliar a superar as carências crescentes de literacia digital, num país e num mundo onde a incapacidade para usar meios digitais se tornou gravemente debilitante.
É chocante que um cidadão seja hoje legalmente obrigado a recorrer a serviços online, para os quais não tem alternativa, sem que o Estado tenha assumido, alguma vez, a responsabilidade de o educar para o efeito.
Daqui resulta mais evidência para a educação, que este período de pandemia tornou clara. A importância de manter um serviço pedagógico televisivo de alta qualidade para as populações desejosas de aprenderem, mas que não têm alternativas.
Em resumo, são estes os desafios que se colocam à educação em Portugal a partir do próximo mês de setembro:
- Reforçar radicalmente a autonomia nas escolas.
- Assegurar que cada escola ou agrupamento constitui uma infraestrutura tecnológica sustentável e um padrão de práticas que a prolongue de forma permanente para o espaço online.
- Desenvolver de forma gradual a competência dos professores para a educação online.
- Iniciar um percurso gradual de apropriação cultural do telemóvel para a prática pedagógica.
- Manter um serviço público, pedagógico, televisivo de alta qualidade para as populações que pretendam aprender mas não têm alternativas e assegurar, desde já, através desse serviço, um programa de alfabetização e de literacia digital.
Sem comentários:
Enviar um comentário