Médico especialista de Medicina Geral e Familiar, João Júlio Cerqueira dedica-se a refutar mitos e desinformação anti-científica no âmbito da página "Scimed - Ciência Baseada na Evidência". Recentemente anunciou a criação de uma associação com o objetivo de denunciar profissionais de Saúde que promovam tratamentos perigosos ou inúteis e apoiar doentes lesados que pretendam defender-se em tribunal. Em entrevista ao Polígrafo, desmonta o argumento dos falsos positivos no âmbito da pandemia de Covid-19 e critica a posição da OMS relativamente às "medicinas alternativas".
© Ricardo Meireles
O que é que o motivou a criar a página "Scimed - Ciência Baseada na Evidência"?
Criei a página há cerca de três anos. Começou a haver uma utilização das redes sociais por parte de alguns profissionais de Saúde e terapeutas alternativos na tentativa de promover tratamentos pseudocientíficos e notei que não havia propriamente uma resposta relativamente a uma série de informação que ia sendo partilhada.
Pode dar algum exemplo?
Um colega meu, o Dr. Pinto Coelho, promovia o mito do colesterol e a ingestão de água do mar, estando sempre contra o consenso científico estabelecido. Aproveitou o sucesso do Lair Ribeiro no Brasil e mimetizou toda essa promoção da pseudociência que ele fazia, mas no conceito português. Escreveu os livros “Como chegar novo a velho” e o “Colesterol - Mitos e Realidade”, que são compêndios de desinformação na área da saúde.
Como é que se explica que médicos de profissão estejam a relativizar desta forma o impacto e a gravidade de uma pandemia que neste momento parece estar na iminência de provocar ruturas na capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde?
Mais uma vez é uma capitalização do descontentamento da população. Ninguém está feliz com o que está a acontecer. Houve imensa gente que sofreu com o lockdown e o descontentamento é perfeitamente legítimo. O problema é que houve uma orientação desse descontentamento de forma errada. Em vez de as pessoas se organizarem para evitar que isto voltasse a acontecer, uma grande percentagem da população optou por negar o problema.
Qual é a sua perspetiva em relação ao grupo "Médicos pela Verdade"?
Os "Médicos pela Verdade" são, na sua maioria, pessoas com ligações à pseudociência. Há um médico que acha que a amantadina é a cura da Covid-19, médicos homeopatas, médicos de medicina integrativa, pessoas ligadas às terapias alternativas e promotores do medo em relação ao 5G. Vejo-os da mesma forma como vejo médicos como o Dr. Pinto Coelho a promover desinformação. Que a urgência de se regular a profissão de uma forma mais incisiva é cada vez maior.
A Ordem dos Médicos (OM) abriu processos disciplinares a alguns dos médicos desse grupo. Que consequências é que prevê?
Não acredito que vá haver qualquer tipo de consequência, tendo em consideração o registo da atuação da OM. Só agem quando são coisas gravíssimas. A Ordem tem uma atitude demasiado reativa e pouco preventiva, o que faz com que as pessoas se sintam à vontade para se identificarem como médicos e depois fazerem ou dizerem uma série de barbaridades que têm consequências reais na vida das pessoas.
A mais recente teoria dos negacionistas da pandemia, ou dos que relativizam a sua gravidade, ao ponto de rejeitarem quase todas as medidas de prevenção e contenção do contágio, aponta para uma imensidão de “falsos positivos”, embora o número de internamentos (e de recurso às unidades de cuidados intensivos) não cesse de aumentar. Essa teoria tem algum fundamento ou validade científica?
A verdade acaba por desmentir essa teoria. Basta ver a quantidade de pessoas que está internada e o que está a acontecer na Europa para perceber que não é uma pandemia de falsos-positivos.
Os testes têm uma determinada especificidade e sensibilidade. Quanto maior for a sensibilidade, maior a capacidade dos testes de encontrar positivos. Quanto maior for a especificidade, maior a capacidade de encontrar negativos. Quando a especificidade baixa, começamos a ter falsos positivos. Quando a sensibilidade baixa, começamos a ter falsos negativos. Este valor intrínseco da especificidade e da sensibilidade é afetado pela prevalência da doença na população. Se tivermos uma prevalência baixa, aumentamos a probabilidade de ter falsos positivos.
Como é que esses dois conceitos - de especificidade e sensibilidade - ajudam a contradizer estas teorias?
Os negacionistas alegam que estamos a fazer testes em circunstâncias de baixa prevalência de doença, ou seja, que estamos a usar este teste como teste de rastreio. E não é verdade. Utilizamos como teste de diagnóstico em pessoas com suspeita de infeção ou que tiveram contacto com alguém que tenha tido infeção. A não ser em casos específicos, como pessoas que vão fazer cirurgias ou jogadores de futebol antes de um jogo, por exemplo.
É o único argumento utilizado por quem questiona a fiabilidade dos testes de despistagem da Covid-19 que têm vindo a ser realizados?
Outro muito utilizado é a questão da especificidade. Dizem que o teste tem uma especificidade a rondar os 95% a 99% e o que a realidade mostra é que o teste tem uma especificidade muito próxima dos 100%. Há países a fazer testes de forma massiva na população geral, em circunstâncias de baixa prevalência, e mesmo considerando todos os positivos como sendo falso-positivos a especificidade seria de 99,9%. Portanto, estes dados desmontam a teoria dos falsos-positivos.
Disse que a realidade acaba por desmentir esta teoria…
Mesmo que o teste fosse fraco, basta olhar para o que está a acontecer no nosso país. O aumento do número de testes positivos acompanha o aumento de número de pessoas que ficam internadas. Se o teste fosse problemático nesse sentido, o número de internamentos e de admissões em UCI não acompanharia o aumento do número de casos.© Ricardo Meireles
Outra questão muito referida nas últimas semanas é o suposto desaparecimento de casos e mortes por gripe. Nas redes sociais está a ser difundida a ideia de que a Covid-19 substituiu a gripe, sugerindo-se que a gravidade da Covid-19 está ao nível da gripe e não se justificam as medidas de prevenção e contenção do contágio. Isto faz algum sentido?
As medidas que estão a ser adotadas para controlo da Covid-19 são também eficazes para outras doenças respiratórias. Temos observado uma diminuição brutal numa série de doenças respiratórias, não só a gripe, mas também pneumonias. Há estudos que o demonstram.
O problema é que o SARS-CoV-2 é mais infecioso do que a gripe e as pessoas antes de saberem que têm sintomas já estão a contagiar outras, algo que habitualmente não acontece com a gripe. No caso da gripe temos a vacina e alguma imunidade parcial. O que faz com que a gripe perante estas medidas que estamos a tomar tenha mais dificuldade em propagar-se.
O facto de haver tantos infetados por Covid-19 pode também estar a retirar doentes que seriam infetados com gripe ou outras doenças respiratórias. Mas não há evidências disso. Aliás, já foi detetado o primeiro caso de infeção simultânea por gripe e Covid-19.
Por último, se estas medidas não fossem eficazes, e para além da Covid-19 tivéssemos neste inverno de lidar também com a gripe, seria bastante problemático. E mesmo assim vamos ter vários problemas a lidar com a Covid-19.
As medicinas alternativas têm cada vez mais seguidores?
O número de seguidores de terapias alternativas mantém-se mais ou menos estável. O problema é que a percentagem de utilizadores é relevante. Gostava de dizer que é exclusivamente por ignorância da população, mas não parece ser esse o caso. O grupo-alvo das terapias alternativas são mulheres na casa dos 40/50 anos, com uma capacidade económica acima da média e habitualmente instruídas.
Acredito que seja pelo descontentamento das respostas da medicina convencional, principalmente pessoas com doenças crónicas que não aceitam que uma determinada doença não tenha cura. Além disso, os terapeutas alternativos dão mais atenção aos doentes. Nesse aspeto conseguem ser mais médicos que os médicos.
E porque é que isso acontece?
A procura por cuidados de saúde, principalmente no Serviço Nacional de Saúde, é tão grande que é impossível um médico dedicar a atenção que o doente merece no pouco tempo que tem disponível. Há também profissionais de saúde em burnout que começam a ter falta de empatia e resposta emocional aos problemas dos doentes que deviam ter. Claro que depois de estarem duas horas com um terapeuta alternativo os doentes sentem que as suas queixas foram ouvidas e valorizadas. O que leva a que só isso faça parte do tratamento e contribua para a tal falsa sensação de que a terapia funciona.
Há alguma terapia alternativa que tenha efeitos comprovados cientificamente?
O próprio termo terapia alternativa indica que esse tratamento não tem evidência científica comprovada. Pode ser que no futuro algum dos tratamentos utilizados seja demonstrado como sendo eficaz. Tenho alguma esperança em algumas técnicas de osteopatia para tratamento de lesões músculo-esqueléticas.
O facto de a Medicina Tradicional Chinesa ser reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) levou a que mais pessoas recorressem a estas terapêuticas?
Sim. Quando temos uma organização como a OMS, que é tida como uma instituição séria respeitável, a validar medicinas tradicionais qualquer leigo acredita que o tratamento funciona. O problema é que a OMS tem uma componente científica e uma componente política. E dado que muitas vezes o financiamento dos programas deriva de compromissos políticos, então temos aqui uma situação em que uma mão lava a outra.
Afirmou numa entrevista para a Acta Médica Portuguesa em 2018 que "a OMS consegue financiamento por parte de países asiáticos e, em troca, acaba por ser permissiva a essas medicinas alternativas orientais". Na altura, disse que isso não ia mudar. À luz desta pandemia mantém a sua opinião?
Mantenho e aliás a minha opinião vai ser reforçada, porque os EUA, que eram o principal financiador da OMS, saíram de cena. O que deixa a OMS mais permissiva ou permeável a que apareçam outros players que financiem a organização em troca de contrapartidas que os beneficiem direta ou indiretamente.
Há cada vez mais influencers, e até mesmo médicos, que incitam pessoas a tomarem suplementos de vitamina C, vitamina D e zinco para reforço do sistema imunitário no combate à Covid-19. Essa recomendação tem validade científica?
Todas essas vitaminas são fundamentais para um bom funcionamento do sistema imunitário. A questão é que é muito difícil atualmente haver uma deficiência de vitamina C ou de zinco. Em relação à vitamina D foi assumido, de forma errada, que há um défice a partir de um certo nível. Isto significa que há uma grande percentagem da população que supostamente tem níveis abaixo do normal, embora na prática não tenha.créditos: © Ricardo Meireles
O que dizem os estudos sobre a eficácia da vitamina D?
Os estudos observacionais que vão saindo apontam sempre para que a vitamina D seja extremamente eficaz no tratamento de dezenas a centenas de doenças e passado um tempo saem estudos randomizados (ou seja, os de melhor qualidade) que dizem que afinal é ineficaz.
Estamos a assistir a este padrão no caso da Covid-19, em que temos neste momento muitos estudos observacionais a dizer que é muito eficaz, temos estudos randomizados de baixa qualidade a dizer o mesmo, e zero estudos randomizados de alta qualidade que nos deem a garantia de que é eficaz. E a minha suspeita é que quando esses estudos surgirem, vamos ver que a vitamina D para pouco serve.
Que importância é que atribui ao jornalismo em geral, e particularmente ao jornalismo de verificação de factos, no combate à desinformação exponenciada pelas redes sociais? Considera que a pandemia de Covid-19 acentuou a importância do jornalismo de verificação de factos?
O jornalismo é o principal instrumento que temos ao nosso dispor para oferecer informação à população de uma forma que seja digerível. Se o jornalismo for bem feito é um instrumento ótimo para ter uma população informada. Caso contrário, é um problema para toda a sociedade.
Relativamente à Covid-19, os jornalistas têm tido uma atitude responsável, o problema é que os jornais têm dado colunas de opinião a pessoas que não são jornalistas e que estragam todo o trabalho que estes fazem. Não é possível ter um Observador, um Expresso ou um Jornal de Notícias a dizer que a pandemia é muito grave, e a seguir permitirem ter colunistas a dizer que a Covid-19 é uma gripe banal, que as máscaras não funcionam e que o tratamento passa por sermos felizes. Isto é problemático.
O que é um "naturopata"?
É um agregador de terapias naturais. Ou seja, tanto pode estar a vender homeopatia, como amanhã medicina ortomolecular, que são conceitos completamente contraditórios. Um diz que quanto mais diluída for uma substância mais potente ela é, o outro que quanto maior for a dose de determinados suplementos alimentares melhor.
Utilizam tratamentos de todas as medicinas tradicionais e mesmo da medicina convencional. Oferecem um pouco de tudo, não há critério. Neste momento temos naturopatas a recomendar a utilização da cloroquina e hidroxicloroquina quando nós já demonstramos que não funciona. Além disso, rejeitam os tratamentos para o cancro. Alegam que a quimioterapia não funciona e que não passa de "veneno".
Qual é o maior perigo inerente aos "naturopatas"?
São o principal foco de desinformação em relação à medicina convencional. Existem dezenas de estudos que demonstram o perigo que representam relativamente à aceitação da vacinação, por exemplo. E o Estado valida, dando cartões da ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde) e credibilizando de forma institucional estes focos de desinformação. Por um lado, o Estado luta pelo bem-estar da população e pela saúde pública, por outro permite a ingressão de cada vez mais pessoas num culto de desinformação científica.
Anunciou recentemente que pretende criar uma associação semelhante à APETP (Asociación para Proteger al Enfermo de Terapias Pseudocientíficas). Qual é o objetivo da associação?
O objetivo é proteger a população, denunciando a prática de tratamentos sem benefício demonstrado à luz da evidência científica, por parte de terapeutas convencionais e não convencionais. Consideramos também dar apoio legal a quem se sinta vítima de burla ou dano corporal por estas práticas e proteger quem for judicialmente perseguido por estes terapeutas, dado o risco que temos assistido na denúncia das charlatanices que promovem. Tentaremos também ser mais uma força de pressão sobre os órgãos legislativos para deixar de dar legitimidade legal à charlatanice. Não faz sentido, no século XXI, tratar bruxarias como se de tratamentos válidos se tratassem. Devem ser colocados ao nível dos astrólogos.
Em que fase é que está a criação desse novo projeto?
Já temos nome. Vai ser ACSBE - Associação pelos Cuidados de Saúde Baseados na Evidência. Já temos estatutos, já temos os primeiros órgãos sociais, e falta abrir a associação, aprovar o regulamento geral, fazer o site e depois gerir e começar a publicitar para angariação de sócios para entrarmos na próxima fase.
O que a associação vai fazer também já está mais ou menos bem definido, agora é trabalhar para implementar este projeto no terreno. Tal como o "Scimed - Ciência baseada na Evidência" não tenho absolutamente nenhuma agenda, nem sei qual vai ser o impacto disto, vamos ver daqui a uns anos o que é que vai acontecer. Espero que até ao final do ano o projeto esteja implementado, pelo menos a angariação de sócios e a publicitação. E depois veremos.
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