O Cineteatro Municipal de Serpa recebeu, no passado dia 9 de fevereiro, o segundo concerto do festival Terras Sem Sombra. Sob o mote À Vol d’Oiseau: Aves e Biodiversidade no Repertório Pianístico – do Barroco ao Presente, a pianista Ana Telles e o professor João Eduardo Rabaça subiram ao palco para conversar, explicar e tocar peças de Rameau e Schumann, Liszt e Messiaen, passando por Maurice Ravel ou Philippe Hersant. Num mundo em constante mudança e extinção massiva de espécies para a sua própria sobrevivência, foi uma oportunidade única assistir a um repertório de piano a solo quase como um refúgio musical que ressoou num público cada vez mais preocupado, expandido e afetado. Ana Telles conseguiu fazer um hino à natureza de artistas e compositores que nunca deixaram de se maravilhar com a beleza estupefaciente das paisagens e com a magia dos pássaros.
Olivier Messiaen chamou-os de “músicos de Deus”. Este fascínio persistente por pássaros pode ser inquirido até alguns dos primeiros exemplos de música notada: a famosa composição musical inglesa do século XIII, Sumer Is Icumen In, imita o apelo do cuco como um prenúncio da primavera, enquanto no século XVI foram produzidas por Jannequin e Gombert duas peças corais de grande sucesso, ambas chamadas Song of Birds. Desde o início, foram as formas de música mais simples que foram copiadas com maior frequência, por razões óbvias. Na sua Sinfonia Pastoral, por exemplo, Beethoven cita três pássaros: o inevitável cuco, a codorna, com o seu padrão rítmico repetitivo e reconhecível, e os trinados e notas longas que são as características salientes da canção do rouxinol. Mesmo quando os modelos são tão distintos, os resultados geralmente são pouco mais que caricaturas – os esboços são mais simples do que a melódica e ritmicamente mais originais, mais sofisticados e mais complexos. Inconvenientemente para os compositores, as aves não se limitam à escala cromática ou aos limites de um esquema métrico direto.
À Vol d’ Oiseau
Desta forma, o uso do canto dos pássaros na música passou a ser uma maneira de deliberadamente evocar um estado de espírito ou um local, ao invés de uma qualquer tentativa de ser ornitologicamente exato. Os compositores, antes do final do século XX, usavam o canto dos pássaros não tanto pelo que ele intrinsecamente era, mas pelo que ele poderia sugerir ou representar. Messiaen, no entanto, foi muito além da simples trivialidade. Há algo de sistemático no uso que deu aos cantos de pássaros e que ele notou e marcou com tanto cuidado: a sua mais importante partitura de pássaros, Catalogue d’Oiseaux, para piano a solo, composta em meados da década de 1950, indica isso mesmo. Mas mesmo os pássaros de Messiaen, apesar de todos os cuidados que teve a transcrever nas suas canções, raramente são reconhecíveis na sua música. Sem conhecer a fonte selvagem, é impossível identificar mais do que um punhado de centenas de pássaros que se aglomeram nos seus trabalhos posteriores.
Ana Telles e João Eduardo Rabaça ensinam-nos isso. A pianista desafia-nos a isso, enquanto deambula as mãos, de forma leve e suave, entre teclas. As gravações dos pássaros estendem-se e ouvem-se no auditório em estado bruto, não modelado, e os resultados servem como pano de fundo para o espaço de comentário dos intervenientes – ambos docentes na Universidade de Évora –, numa constante mudança entre a conversa e a música do piano, uma autêntica matéria-prima sonora, onde os pássaros são tratados muito além do que meros objetos musicais. A dificuldade em transcrever o canto dos pássaros para o papel é notória; os sonogramas produzidos eletronicamente podem gravar de forma gráfica o conteúdo e a estrutura, mas são de difícil leitura e compreensão para os leigos. Mas Messiaen é um caso especial. Embora seja possível entender o fascínio de outros compositores menos rigorosos pelo canto dos pássaros – até Mozart, de certa forma o mais instintivo dos compositores, teve um estorninho treinado para que pudesse escutar a sua espantosa imitação – as suas tentativas de incorporar elementos do canto nas suas obras, ou criar paralelos entre essa música e as suas próprias obras, sempre foram exercícios estéticos, tentativas fundamentalmente falhadas de conciliar dois instintos irreconciliáveis entre aves e humanos.
Maurice Ravel também teve o seu papel. O tratamento do compositor francês nas vastas possibilidades do piano foi inspirado simultaneamente pelo estilo florido de Franz Liszt, e o mais profundo avanço na técnica do piano desde o tempo desse grande virtuoso. Este estilo veio a ser uma pedra angular do impressionismo francês e até influenciou o contemporâneo mais antigo de Ravel, Claude Debussy. A peça «Oiseaux Tristes» – também interpretada por Ana Telles – faz parte da obra Miroirs e é uma parte triste e melancólica que Ravel descreveu como “pássaros perdidos no torpor de uma floresta escura durante as horas mais quentes do verão”. O acompanhamento do tuplet estático e silencioso que persiste durante a maior parte da peça certamente evoca a névoa sufocante do verão. Mas acima disso, ouvimos os melancólicos cantos dos pássaros, perdidos na opressão da floresta, alguns suaves, outros mais altos e penetrantes. Grande parte do movimento passa silenciosamente, tornando a sua melancolia cada vez mais pungente, livre na estrutura e improvisação da natureza, de uma ascensão solitária a um forte que cria um clamoroso clímax do canto de pássaros. O clímax é fugaz, no entanto, a música rapidamente retorna ao seu triste comportamento. Uma cadência então precede o fim sombrio do movimento.
Embora tenha havido alguma teorização desejável e algumas tentativas de apresentar evidências circunstanciais, ninguém jamais sugeriu convincentemente que o canto dos pássaros tenha qualquer componente puramente estética. Parece que mesmo as músicas mais elaboradas evoluíram para um propósito estritamente biológico. Os pássaros cantam para maximizar as suas chances de transmitir os seus genes – definindo os seus territórios e atraindo um possível parceiro – e o que eles cantam, por mais complexo que seja, não tem qualquer propósito além do imperativo da herança. Alguns compositores escrevem música num esforço para definir o seu próprio território, mas fazem-no primeiramente por razões estéticas e valores artísticos. É uma perceção humana do canto dos pássaros, e a música que ouvimos é apenas uma proporção do que a mesma contém em termos de notas, sons rítmicos e estrutura. É apenas uma construção intelectual.
Professores Ana Telles e João Eduardo Rabaça |
Fonte: aqui
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