É extremamente curioso ver o desacerto estratégico, que revela de imediato a actual pobreza cultural e ideológica, da extrema-direita nacional ao atacar emigrantes magrebinos no Porto.
Como qualquer cidadão minimamente informado sabe, os argelinos e marroquinos, embora tendo agência pessoal, isto é, vontade e capacidade de decisão, não são o alvo da extrema-direita, mas apenas a peça executora e controlada de um contexto global económico e social.
Por outras palavras, os alvos da extrema-direita nacional, se esta estrategicamente os escolhesse, e os decidisse combater, nos únicos formatos admissíveis, que são os fixados na Lei e na Constituição, e nunca pela acção directa violenta, são o coordenador da rede emigratória, o proprietário do imóvel, no caso onde os magrebinos foram atacados em casa, e o empregador.
Sendo estes os alvos, a extrema-direita nacional enfrenta um enorme problema, e talvez o exercício de violência sobre os emigrantes magrebinos não seja sinal de um desacerto estratégico, mas antes de uma impotência e de um desespero na acção, o que é ainda mais grave para os seus ideólogos e militantes.
Na verdade, os alvos que elenco são inacessíveis para a extrema-direita nacional, cada um pela sua razão.
O coordenador da rede internacional migratória é-lhe desconhecido, sendo apenas um dos milhares de operadores que dão materialidade e execução aquilo que hoje se chama “a economia do biscate” (gig economy) que assenta, essencialmente no fornecimento de mão de obra barata, maioritariamente não ocidental, aos mercados dos países desenvolvidos.
Ou seja, em Portugal fornece a mão de obra à hotelaria, distribuição, construção, agricultura, pequeno comércio e bem-estar físico, noutros países desenvolvidos a outros nichos do mercado, como é o caso da carne nos EUA e na Alemanha.
O proprietário do imóvel e o empregador, na esmagadora maioria dos casos sócios de pme´s, são intocáveis para a extrema-direita, porque, teoricamente, mas não na realidade nacional, são a sua base de apoio sociológica.
Por último, e mais uma vez basta ler a abundante literatura científica disponível, não é o emigrante magrebino, como não é o emigrante brasileiro, paquistanês, africano ou nepalês, que estão no terreno a roubar o trabalho ao cidadão nacional.
O emigrante ocupa o posto de trabalho porque aceita trabalhar com remuneração e direitos extremamente inferiores aos dos cidadãos nacionais, e caso essa força de trabalho não estivesse disponível, os postos de trabalho seriam extintos, ou substituídos pela tecnologia e pela deslocação da operação, sendo este o caso gravíssimo da manufactura nos EUA, que em muito explica a delirante, mas abundante, base de apoio de Trump.
Sendo este o contexto, os actos violentos no Porto não são mais do que, no ângulo político, tontices imaturas, e, no ângulo legal, crimes.
Ou seja, a extrema-direita nacional está totalmente encurralada.
Vasculhando o seu património cultural e ideológico, poderia apoiar-se no tradicionalismo moral, no nacionalismo, no patriotismo, na ordem e segurança, e no racismo.
Mas não o pode fazer por duas razões, uma de ordem cultural, outra de ordem posicional.
No caso do tradicionalismo moral, assenta na família monogâmica heterossexual católica perpétua, não tem qualquer base demográfica de suporte, especialmente em meio urbano, porque esta é uma das áreas onde os cidadãos nacionais mais abandonaram os valores tradicionais católicos.
No caso do nacionalismo, a pertença nacional à União Europeia, por um lado, a dependência de várias cadeias mercantis globais, e a ausência de um inimigo directo, tornam a causa impopular para a população.
O patriotismo é também uma causa de complexa criação de exaltação nos cidadãos, tanto porque é imaterial, como porque é impraticável, no caso da obtenção de capital e de mão de obra, e também dado que, infelizmente, a sua manifestação activa banalizou-se, seja nos cantos dos estádios, seja nas reivindicações profissionais.
Hoje, de novo infelizmente, canta-se o hino por qualquer razão menor.
Resta então à extrema-direita o racismo, que mais uma vez não tem massa demográfica de apoio, e todo o universo da Ordem e da Segurança.
Infelizmente para a extrema-direita nacional, o Chega, com visão estratégica, ocupou todas as dimensões da ordem e da segurança, da corrupção dos políticos ao menosprezo cultural pelas forças de segurança.
Seguindo os extremos políticos e sociais desde 1989, os de esquerda e direita, dos de ideário apenas político aos de agenda ecológica, não vejo nenhuma entidade mais encurralada que a extrema-direita nacional.
A extrema-esquerda tem uma causa poderosa, a da luta contra o capital global e contra os efeitos da sua implacabilidade, e os movimentos de agenda social, dos ecológicos aos de defesa dos direitos das minorias, um apoio demográfico em crescendo.
A extrema-direita nacional continua como começou em democracia, por volta de 1986.
Nunca soube criar uma agenda política que a fizesse respeitada e apoiada, caindo sempre na tentação de se transformar em grupo de violência que mata, magoa e fere.
É uma pena, porque, ao contrário do que muitos defendem em Portugal, continuo a ter a crença que todas as culturas, formas e formações políticas e sociais extremas têm lugar em democracia e contribuem, mesmo que não o queiram e desprezem a democracia, para tornar melhor uma sociedade democrática.
É que discutir uma ideia faz-nos sempre ganhar mais conhecimento.
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