domingo, 14 de janeiro de 2024

Pacheco Pereira - Só vale a pena comemorar o 25 de Abril em modo combativo


«Os 50 anos do 25 de Abril vão ser comemorados por todo o lado (só o Arquivo Ephemera tem cerca de 50 pedidos de organização ou cedências de material para exposições e participação em debates e conferências, de escolas, autarquias, universidades e outras instituições, dos quais talvez se consiga responder a metade…). Não tenho dúvidas de que vai haver centenas e centenas de realizações e, embora haja o risco de overdose e de a partir de Março não se poder mais ouvir falar do 25 de Abril, isto significa que a data entrou completamente na normalidade institucional do país, o que é bom e mau ao mesmo tempo.

Que se lembre a determinação e coragem dos que o fizeram, que se fale por comparação com os anos da ditadura, é bom. O que é mau é que se comemore a data mais ou menos por obrigação como se fosse um dia santo republicano e laico, e não a Revolução de 25 de Abril. Sim, a “revolução”, que está muito para além da data, porque o 25 de Abril a partir da manhã deixou de ser um golpe de Estado para ser uma revolução, quando muitos milhares de pessoas vieram para as ruas, os militares tiveram que acelerar a ocupação da PIDE e a prisão dos agentes, que, recorde-se, mataram as últimas vítimas directas do Estado Novo na metrópole, tiveram que libertar os presos políticos, acabar com a censura nas ruas e aceitar a realização do 1.º de Maio e mil e um pequenos/grandes factos consumados que a Junta de Salvação Nacional não desejava.

A rua somou-se aos quartéis e a rua fez a revolução. Os historiadores, os sociólogos e os políticos têm usado o termo ou criticado o seu uso, têm-no definido com vários graus de exigência, mas que o 25 de Abril foi uma revolução, isso foi. Por muito tumultuoso que tenha sido o processo – e em bom rigor era difícil que não fosse, num país com tão longa ditadura e com uma guerra colonial em curso –, no dia 24 não havia liberdade, nem democracia, e no dia 25 havia liberdade e desta passou-se à democracia. Pode tudo estar a correr mal, podem os partidários do “cumprimento de Abril” dizer que este está “por cumprir”, mas a diferença entre 24 e 25 ainda está viva e bem viva.

Mas ter liberdade e democracia nunca é isento de perigos, e a sua fragilidade exige uma combatividade do bem que está longe de existir. Temo aliás que, por complacência e preguiça, por mesquinhez com as pequenas insatisfações de cada um, pela degradação da qualidade de vida e pela degenerescência cultural, pela falta de exigência, pelo egoísmo individual, as comemorações sejam mais um ritual do que algo com significado em 25 de Abril de 2024. Tanto mais que, entre eleições e crises políticas, o certo crescimento da direita radical, e não é só no Chega, vai ser a pior ecologia para recordar uma data que vai valer a pena lembrar mas só em modo combativo.

Pouca gente atacará o 25 de Abril directamente, principalmente no terreno da política, mas existem ataques que minimizam o seu significado. Quando se coloca o 25 de Novembro em paralelo com o 25 de Abril, para além de uma asneira histórica, está-se a diminuir o 25 de Abril. Foi feito. Ou, noutra variante, o retorno de “como era bom Mussolini porque fazia os comboios chegarem a horas”, que alguns pseudo-académicos que não se enxergam dizem por aí da ditadura. Foi dito.

Qualquer minimização da violência, crueldade, atraso, fraude, discriminação, perseguição, e mais mil e uma coisas como a ideia falsa de que a corrupção é uma característica da democracia e não existia no “tempo de Salazar”, devia obrigar a ler os milhares de cortes da censura que protegiam o regime das notícias perturbadoras para a “paz” dos espíritos, a começar pelo capítulo intitulado “desfalques”. Foi sugerido. Do mesmo modo, a pedofilia, os abusos sexuais e a sistemática violência contra as mulheres... – lá porque não se falava disso, não quer dizer que não fosse um período negro favorável a todos os abusos, exactamente porque não se podia falar disso. Foi minimizado. Aliás, talvez o que de mais grave se esquece, mesmo nas comemorações, é que a ditadura tem milhares de mortos à sua responsabilidade, não porque a PIDE matasse muito menos do que as suas congéneres europeias, como alguns dizem, e é verdade para a metrópole, mas havia três guerras coloniais em curso e nelas morreram muitos soldados portugueses e muitos africanos. Foi esquecido.

O que queria dizer ao enumerar todos estes males sociais e políticos que desgastam a liberdade e a democracia é que eles têm autores, uns mais conscientes do que estão a fazer, outros porque vão na onda e acham que não têm nada a perder, e estão a estragar o 25 de Abril. Usando um exemplo trivial, é como aqueles que nunca quiseram saber dos sindicatos, até os desprezavam, mas que quando são despedidos vão lá bater à porta, para ter um advogado que defenda os seus direitos.
O que digo é que é importante defender o que temos, antes de ir bater a uma porta que pode até já não existir.»

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