terça-feira, 22 de novembro de 2022

Fact Check: Afinal, quantos trabalhadores migrantes morreram nas obras do Mundial no Qatar?

O The Guardian falou em 6500, a Amnistia Internacional em 15 mil, mas estariam a referir-se a mortes relacionadas com a construção dos estádios e de outras infraestruturas? António Lobo Xavier garante que essa narrativa é falsa. Vamos verificar.



António Lobo Xavier criticou esta semana, no programa de comentário político “O princípio da Incerteza”, da TSF e da CNN Portugal, “as tiradas populistas” que alegam que os estádios do Mundial de futebol no Qatar foram construídos “sobre as ossadas de 6500 cadáveres”. “Não estou a dizer que as condições de trabalho são ideais no Qatar. Estou a dizer que esse número é falso”, atirou o advogado e antigo deputado pelo CDS, para depois fundamentar: “Esse é o número de mortos não locais num período de dez anos, e as embaixadas desses países já vieram confirmar que não há qualquer ligação entre esse número e o de mortos em acidentes de trabalho nos estádios.”

Antes, Alexandra Leitão, ex-ministra e atual deputada pelo PS, tinha referido esse dado, avançado pelo jornal britânico The Guardian em fevereiro de 2021, e também um outro, da Amnistia Internacional, que num relatório de agosto do mesmo ano falou em cerca de 15 mil mortes de trabalhadores migrantes no Qatar, no período entre 2010 e 2019.

Desde então, estes dois números têm sido amplamente citados na imprensa internacional e enraizou-se na opinião pública a ideia de que, embora díspares, correspondem a estimativas de vítimas mortais relacionadas com as obras de construção dos estádios ou de todas as infraestruturas associadas ou impulsionadas pela organização do Mundial 2022, como estradas, hotéis, estações de metro, arranha-céus e o novo aeroporto. Mas será mesmo assim? Ou tem razão António Lobo Xavier, quando põe em causa esta correlação a que chama “mistificação”?

As fontes

O The Guardian baseou a sua investigação em fontes oficiais (como embaixadas) dos cinco países fornecedores de mão de obra que analisou: Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. São estas as principais origens dos trabalhadores migrantes no Qatar, mas ficaram de fora outras comunidades importantes, como a egípcia, a filipina ou a queniana.

Além disso, e mais importante, as 6751 mortes que o jornal contabilizou, no período entre 2010 e 2020, correspondem à mortalidade total de naturais daqueles cinco países, independentemente das causas e das circunstâncias em que elas ocorreram. Não é sequer conhecida a profissão e o local de trabalho das vítimas, embora se saiba que a maioria dos trabalhadores migrantes passe pelo setor da construção. Em rigor, o número traduz o total de expatriados daquelas nacionalidades que morreram no Qatar ao longo da década; não reflete a quantidade de pessoas que morreram enquanto trabalhavam nas obras dos estádios ou das restantes infraestruturas (nem a publicação britânica o advoga).

Face à dificuldade em obter dados precisos e detalhados no Qatar – que, na maior parte dos casos a envolver migrantes, atribui a morte a causas naturais, apesar das idades abaixo dos 50 anos -, o The Guardian relaciona muitas destas mortes, ainda assim, com as obras do Mundial, perante os testemunhos de quase escravidão que foram sendo conhecidos na primeira pessoa e não só. O calor intenso e os ataques cardíacos, a desidratação e as falhas renais, os abusos dos empregadores e as condições de vida precárias dos migrantes ou a ausência de autópsias para apurar as causas da morte sugerem, evidentemente, uma correlação – mas nunca total.

A organização qatari, por seu lado, só reconhece a morte de 37 trabalhadores envolvidos na construção dos estádios (não engloba as outras infraestruturas), ao longo de todos estes anos, e acrescenta que apenas três sucumbiram durante o expediente. Ou seja, oficialmente, só há registo de três acidentes de trabalho.

Quanto ao número citado no relatório da Amnistia Internacional, o pressuposto é o mesmo em que se baseou o The Guardian. Os cerca de 15 mil estrangeiros que morreram no Qatar, entre 2010 e 2019, referem-se à mortalidade total, sem qualquer discriminação, por exemplo, no que respeita à atividade profissional e muito menos ao setor da construção, como a própria ONG ressalva. É despropositado, por isso, ligá-lo ao Mundial de futebol. De resto, esta informação é de uma fonte governamental do Qatar.

Conclusão- Verdadeiro

Não se pode afirmar, com o mínimo de rigor, que morreram 6500 trabalhadores migrantes na construção dos estádios ou das restantes obras para o Mundial 2022. O próprio The Guardian nunca o fez, estabelecendo apenas pontos de contacto, através de testemunhos reveladores e não só, entre o futebol e a mortalidade verificada na última década. São estimativas muito complexas de se fazer, face à informação disponível. António Lobo Xavier tem razão ao desacreditar esse número e mais ainda o das 15 mil vítimas mortais, citado no relatório da Amnistia Internacional – que nunca teve a pretensão de o colar à organização do Campeonato do Mundo.

Sem comentários: