Contemplativo e barulhento mesmo em suas mais silenciosas reflexões, “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, escancara a alegria e a dor de simplesmente ser.
Asas do Desejo (1987) não por acaso começa da mesma forma que Blade Runner (1982), de Ridley Scott: com um olho abrindo e uma tomada aérea do espaço urbano que delimitará e condicionará a narrativa a se desenrolar pelas próximas horas.
As temáticas deliberadas nas duas obras, a priori, são as mesmas: o que é o ser humano?
No realismo um tanto quanto fantástico de Asas do Desejo, os anjos e os humanos coabitam o planeta. Visíveis apenas para os seus iguais e para as crianças, dada a inocência destas, os anjos já caminhavam pela Terra bem antes da humanidade surgir e estão fadados a caminharem por muito mais tempo, mesmo após nos extinguirmos. Porém, ao conhecer a trapezista francesa Marion (Solveig Dommartin), o anjo Damiel (Bruno Ganz) se mostra insatisfeito com a sua sina e toma uma decisão: quer virar humano.
Este filme fala de uma grande ferida da Alemanha, do povo alemão: o Holocausto. É difícil conceber que este país (com tamanha tradição na filosofia) tenha sido palco de um dos episódios mais tristes, cruéis e estúpidos da História. Pois os personagens desta obra são os herdeiros da Shoah.
No filme de Wenders, uma longa sequência dá a conhecer a biblioteca estatal de Berlim (Staatsbibliothek), um projecto de Scharoun que dialoga com a Philarmonie, do outro lado do passeio. Talvez mostrando a metáfora do tempo babélico que vivemos, de palavras cujo significado mais íntimo se esqueceu ou não se chega a compreender. E, ao mesmo tempo, da potencialidade absoluta contida nas palavras, da memória como núcleo da identidade, repartida por mil pessoas e mil livros.
Personagens tristes, melancólicas, que parecem ter perdido o “dom” da narrativa. Estes seres não falam de seus sofrimentos com ninguém... se sabemos deles, é por meios dos anjos que ouvem suas almas. Curioso é quando um dos anjos começa a acompanhar um historiador muito velho com a sua grande angústia: “quando eu morrer, quem continuará contando histórias para estas crianças?”. Uma das cenas mais tocantes do filme é, justamente quando ele vagueia por um imenso descampado, onde não existe nada, senão a sua memória do que ali se passava. Ele procura: «Não consigo encontrar a Potsdamer Platz, isto não pode ser Postdamer Platz». “Isto” é a terra devastada que percorre, ao mesmo tempo que lembra que ali, no centro fervilhante da Potsdamer Platz, ficava o Café Josty, onde à tarde se conversava e observava o público, e se fumava o tabaco comprado numa tabacaria de renome. «Não desisto enquanto não encontrar Potsdamer Platz». Noutro momento, o historiador/contador de estórias irá comentar que cada alemão erigiu um muro ao redor de si. Sim, seguramente está falando da morte da narrativa, um tema tão recorrente na obra de Walter Benjamin. Por outro lado, o povo alemão continua sofrendo... no silêncio e na solidão.
Da mesma forma, o texto de Paul Preciado incluído no Sopa de Wuhan, fala de um ensimesmamento potencializado pela pandemia do coronavírus. As fronteiras fechadas dos Estados Nacionais, agora é nossa própria pele; o que Preciado chama de corpo-território. Com a intensificação das redes sociais, todo privado foi engolido por um público-privatizado. Pois é! Não existe mais solidão, mas os sofrimentos (que continuam muitos) ainda não são narrados!!! Quantas vezes pode ser lido no facebook alguém falando de seu sofrimento?! O Outro, além de um concorrente em potencial, virou risco de morte! Um abraço se tornou escândalo nacional, e com razão! Tudo isso serão cicatrizes em nossas almas. Porém Preciado não leva em consideração o sofrimento que Wenders aponta a todo momento em seu filme. Voltando a ele, Wenders fala da crise da narrativa oral, mas aposta na narrativa visual. Para os anjos, tempo e espaço é apenas um detalhe, portanto cenas horríveis do holocausto são mostradas, contrastadas com cenas do momento de então e com um filme que está sendo rodado (metalinguagem). A banda sonora conta com Nick Cave & The Bad Seeds, Crime & The City Solution. A Fotografia é belíssima, principalmente quando o filme está em preto-e-branco. O roteiro é extremamente poético.... logorréico, mas poético. Vale a pena conferir. É nós!
Quando Wim Wenders filmou «As Asas do Desejo», o mundo terminava no Muro. Em 1987, dois anos antes do desmoronamento de um tempo, o realizador não podia prever a reunificação das duas Alemanhas e, sobretudo, que a topografia que o filme registava estava na iminência de desaparecer.
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