sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Espere "fenómenos extremos" na sua vida daqui em diante: calor calor calor → cheias → inundações (e lembre-se de José Saramago)


Eventos extremos mais frequentes e mais intensos - prepara-se para isso. A Natureza está à procura de "um novo equilíbrio" - e quem vive em Portugal e Espanha está mesmo a viver a metáfora da "Jangada de Pedra" do Nobel português

Ondas de calor, incêndios e inundações: várias cidades europeias passaram por vários e diferentes fenómenos climáticos extremos nos últimos dias. Foi o que aconteceu em Londres ou Paris, capitais europeias que ainda há pouco tempo assinalavam recordes de temperatura e que esta semana foram surpreendidas com fortes chuvadas. Em Portugal a água ainda não chegou, mas o decorrer da situação aponta que isso possa acontecer, nomeadamente com o aproximar do inverno.

Os especialistas admitem esse cenário, sendo certo que o futuro se fará de mais fenómenos extremos. Os níveis de precipitação até podem vir a diminuir, mas a intensidade dos mesmos deverá aumentar, como aconteceu em França ou Inglaterra: mesmo com as chuvas que atingiram as capitais daqueles países, o ano continuará a ser de seca extrema para ambos.

Filipe Duarte Santos, um dos primeiros investigadores que estudaram as alterações climáticas em Portugal, aponta à CNN Portugal que esse é o futuro: “Há uma maior probabilidade de termos eventos extremos mais frequentes e mais intensos. Esses eventos podem ser ondas de calor, secas e períodos de precipitação intensa”.

O especialista, que lecionou vários anos na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, afirma que essa é uma consequência clara das alterações climáticas, apontando mesmo que há vários anos que identificou este tipo de problema, que só agora começa a ter maior atenção. É natural, por isso, que os anos venham a ser cada vez mais secos, trazendo consigo fenómenos extremos.

Carlos da Câmara concorda que será cada vez mais normal assistirmos a fenómenos extremos, apontando a expressão "extremos compostos" para definir o caso. O climatologista, um dos mais experientes em Portugal, lembra que 14 dos últimos 20 anos foram de seca em Portugal, mais extrema ou mais moderada, mas há algo que está a mudar: num mesmo ano estão a aparecer vários fenómenos extremos que se verifiquem de forma seguida - em 2003, por exemplo, houve uma forte onda de calor mas não houve seca, já em 2005 aconteceu o contrário, uma das piores secas de sempre mas que não foi acompanhada de qualquer onda de calor. "Em 2017 conjugaram-se os dois fenómenos e este ano há uma seca e já existiram três ondas de calor", nota o também professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, explicando assim que se deverão verificar mais fenómenos extremos num mesmo ano.
Variação de temperatura e precipitação em Portugal (APA)


Por isso mesmo se torna normal que num ano de seca possam aparecer fenómenos como cheias e inundações. Apesar disso, segundo Carlos da Câmara, não é possível estabelecer uma relação causa-efeito entre o aparecimento de secas ou ondas de calor e cheias. Por isso, e mesmo sabendo que, mais tarde ou mais cedo, Portugal vai voltar a ser fustigado por violentas inundações, não é possível prever quando isso vai acontecer.

"Era raro fenómenos como estes encontrarem-se mas a probabilidade de ter os dois está a aumentar muito", vinca, referindo que esta é a forma que a Natureza encontra para procurar "um novo equilíbrio". É como se a Terra tivesse de encontrar forma de se "refrescar", o que leva a que uma atmosfera mais quente resulte em mais vapor de água, o que também vai levar a maior precipitação.

Filipe Duarte Santos também não consegue apontar uma altura exata para um fenómeno de cheias e inundações em Portugal, afirmando que essa é uma tarefa que é difícil para qualquer meteorologista ou climatologista: “Não é seguro que logo após uma seca existam eventos de precipitação muito violentos. Pode acontecer ou não. Aquilo que se está a observar é que há mais movimentos convectivos na atmosfera, há mais movimentos ascensionais do ar que aquece junto à superfície”, afirma, vincando que, embora o ar suba, isso não quer dizer que consigo leve humidade, precisamente por causa da seca que atravessa o território.

O especialista refere ainda que, apesar de não ser possível prever quando vão acontecer, os fenómenos como cheias vão ser "muito mais frequentes e variáveis".

Devemos preparar-nos: como?

O presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil afirma que todos os sistemas de Proteção Civil se devem adaptar aos desafios e ameaças que se colocam nos diferentes tempos. Para Duarte Caldeira, o mais importante é ouvir a Ciência, afirmando que "temos um longo caminho a percorrer na adaptação" a essas novas ameaças.

Para o investigador na área da Proteção Civil, esse caminho é particularmente difícil nos instrumentos jurídicos, havendo já uma noção daquilo que é preciso fazer, mas não existindo ainda forma de o aplicar ao nível legal. Será também necessária uma melhor formação da sociedade, através dos vários intervenientes, começando logo pela escola, e progredindo nos restantes níveis.

"Temos um longo caminho a percorrer, precisamos de dotar os serviços de Proteção Civil de massa critica, é necessário que os serviços ao nível local, nacional e regional estudem estas matérias para terem informação científica sustentada para que os decisores políticos possam tomar as suas decisões", refere, vincando que Portugal "é uma das zonas mais vulneráveis" aos efeitos das alterações climáticas.

Falando especificamente sobre os perigos de inundações, e mencionando os exemplos de Lisboa ou do Porto, Duarte Caldeira lembra que as autarquias há muito que desenvolvem planos específicos contra as alterações climáticas, englobando neles a prevenção necessária para combater fenómenos novos e mais agressivos. Mas também nestas zonas "falta transpor as medidas identificadas para atos de natureza jurídica e decisão política", algo de que ainda "estamos distantes", em especial na questão do ordenamento territorial mas também no comportamento dos cidadãos.

"As cheias são uma caraterística do disparate do planeamento adotado, como zonas de construção em zonas de permeabilização do solo", afirma, falando mesmo em "erros de anos". Agora, diz Duarte Caldeira, não se pode simplesmente destruir as zonas já edificadas, passando a solução por uma "palavra mágica": adaptação, que servirá para a correção dos erros cometidos.

O especialista em Proteção Civil aponta algumas soluções, como a criação de esgotos pluviais, que permitiriam escoar a água da chuva em momentos mais críticos: todos nos lembramos como fica a zona dos Restauradores ou da Praça de Espanha, em Lisboa, quando chove torrencialmente - esse é precisamente o efeito da ausência de esgotos pluviais.

Filipe Duarte Santos não tem dúvidas: "É importante que Portugal e Espanha, os países mais afetados da Europa, se preparem para estes fenómenos extremos". O especialista diz que essa preparação deve acontecer já tendo em vista este outono e inverno, que vão ser marcados pela continuação da seca mas que podem trazer as tais chuvadas, o que "não são boas notícias".

Carlos da Câmara afirma que Portugal, tal como o resto da Europa, "acordou demasiado tarde" para o problema, insistindo na ideia de que a Ciência não foi ouvida atempadamente: "Se acham que está a doer agora, pergunto: de que precisam mais para agir?".

O climatologista não se foca apenas em Portugal, apontando as graves cheias que devastaram a Alemanha em 2021, provocando vários mortos e vários milhões de euros em prejuízos. Por isso, diz o professor, "tem de haver ao nível europeu uma política comum para nos adaptarmos a uma nova ordem do clima". "Já estamos atrasados mas a Ciência já está habituada. Os apelos científicos só têm repercussão muito mais tarde."

No caso português, refere ainda Carlos da Câmara, deve haver uma melhor política hidrológica, até porque uma das grandes consequências das alterações climáticas tem que ver com a escassez de água, que não vai ficar resolvida pelo aparecimento de grandes chuvas, uma vez que a erosão dos solos torna-os mais impenetráveis, contribuindo como mais um fator para o aumento da seca.

Isso quer dizer melhor armazenamento e gestão da água, nomeadamente através das barragens, instrumentos essenciais no racionamento e na reciclagem da água, dois processos que Carlos da Câmara diz serem essenciais para fazer face às alterações climáticas.

Mais frio mas sem chuva: uma projeção

O Sistema Europeu de Informação sobre Incêndios Florestais (EFFIS, na sigla original) faz uma projeção para o próximo inverno que anuncia a continuação de uma seca em Portugal. Trata-se de uma projeção e não de uma previsão, como nota Filipe Duarte Santos, uma vez que “uma previsão eficaz só se pode fazer com uma semana de antecedência”.

Para aquele organismo europeu, e segundo a sua projeção a longo prazo, Portugal deverá continuar em valores “anómalos” de temperatura e precipitação. Essa anomalia acontece quando os valores verificados num determinado período estão acima ou abaixo do considerado normal para o período entre 1971 e 2000.

Esses valores vão estar abaixo do normal para a precipitação até fevereiro de 2023, segundo a projeção, algo que não se deve verificar na temperatura, que também terá uma anomalia mas neste caso negativa, nomeadamente para a faixa litoral compreendida entre Porto e Beja. Um vídeo divulgado pela Agência Portuguesa do Ambiente mostra também como o clima está a mudar, ilustrando o que significa as anomalias de temperatura superiores aos valores de referência.

Mas o facto de o país continuar em seca não quer dizer que não chova. Filipe Duarte Santos explica que essas anomalias podem existir e, ainda assim, verificarem-se fenómenos extremos de precipitação que podem levar a cheias um pouco por todo o país. “É possível termos uma anomalia negativa [valores abaixo do normal] na precipitação e ainda assim termos trovoadas fortes.”

Sobre essas anomalias, Carlos da Câmara explica que se têm verificado valores bem acima do esperado. Os cientistas que estudam o clima pensavam em ondas de calor com valores 1 ou 2 graus acima da referência 1971-2000, mas o que têm verificado é que esses valores ficam 3 a 4 graus acima, o dobro do esperado. "A realidade é que as ondas de calor estão a ser mais intensas do que se previa", diz, reforçando que isso vai piorar com o passar dos anos.

Saramago, uma metáfora

Se as alterações climáticas podem vir a mudar a forma de viver na Europa, certamente que a Península Ibérica será um dos primeiros locais a sentir o efeito. Filipe Duarte Santos recorda o livro "A Jangada de Pedra", de José Saramago, que idealiza uma separação daquele território do resto do continente, algo que também acontece ao nível do clima.

"A Península Ibérica funciona como uma frigideira, a terra aquece mais do que o mar. A frigideira aquece, o ar sobe e é substituído pelo que vem do Mar Mediterrâneo ou do Oceano Atlântico, tornando-se húmido e formando depressões, as tais trovoadas", aponta.

O professor refere que isso pode tornar-se mais frequente, até porque se espera um aumento das temperaturas em Portugal e Espanha, que estão numa transição para ficarem com um clima cada vez mais parecido com o do norte de África: "O que se observa é uma deslocação dos climas para norte. Por isso, Portugal e Espanha vão transitar para um clima como o de Marrocos".

E isso vai originar um solo ainda mais seco na Península Ibérica, o que, aliado a ondas de calor, pode resultar em situações muito graves. Carlos da Câmara refere que isso vai acontecer com maior relevância em zonas como Portugal ou Espanha, que vão ser alvos de uma "reação violenta" da Terra, que procurará o tal "equilíbrio".

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