sábado, 16 de julho de 2022

“Vivemos em plena distopia digital”: será que nos damos conta disso?

No livro de George Orwell, 1984, a vigilância sobre os cidadãos era imposta e inescapável. Em 2022, os cidadãos entregam informação sobre as suas vidas e pensamentos voluntariamente, online, às mais diversas empresas. Neoliberalismo, grandes dados, alienação colectiva e controlo social - estes são os temas na base do fotolivro Laissez Faire, do fotógrafo italiano Cristiano Volk, finalista do concurso Arles Photo Book Awards.


De cada vez que fazemos um "gosto" numa rede social, ou fazemos uma busca no Google, as informações são recolhidas e vendidas a empresas e governos de todo o mundo. Nada de novo. “Se não estás a pagar por algo, então não és o cliente; és o produto que está a ser vendido” é uma frase Andrew Lewis, um blogger do site MetaFilter, que se tornou popular em 2010 e que ganhou lastro até aos dias de hoje. As informações compradas pelos organismos são, então, analisadas e usadas para vender, de forma eficaz e personalizada, produtos e serviços aos utilizadores – que vão desde candidatos eleitorais a meros secadores de cabelo.

Se a informação personalizada que cada utilizador recebe no seu feed (que é construída tendo por base a categorização do seu perfil psicológico) tem o poder de o persuadir com grande eficácia no momento da aquisição de determinado produto ou serviço, onde começa e termina o livre arbítrio? Se a informação personalizada que recebe, por vezes de forma intencionalmente tendenciosa, tem o poder de alterar algo tão importante como a sua intenção de voto – e influenciar, assim, o curso histórico de um país – então qual a linha que separa, na sua mente, o que é real do que é virtual?

É sobre estas questões que se debruça o projecto e fotolivro Laissez Faire, de Cristiano Volk. “Imaginem uma vida vivida sob o brilho da luz de dia artificial, onde a realidade não é experienciada directamente, mas mediada através de ecrãs”, pode ler-se nas páginas do livro editado recentemente pela FW Books e finalista da presente edição do concurso Arles Photo Book Award. “Imaginem um mundo tão densamente conectado que toda lógica sob a qual o percepcionamos – conceitos como o tempo e o espaço, o interior e o exterior, o privado e o público, o dia e a noite – colapsaram numa alucinação colectiva de luz e cores artificiais. Imaginem a alienação de milhares de milhões de sujeitos que servem o único propósito de actuar como veículos para a troca de bens de consumo.” Ou de acções que beneficiam determinados grupos. Cristiano não tem dúvidas: “Pode soar a um futuro distópico, mas é o presente.”

Volk vai mais longe e propõe a reflexão sobre o poder do capitalismo sobre estas ferramentas de manipulação. O título do projecto alude ao conceito criado pelo economista Adam Smith, capitalismo laissez-faire, que propõe que toda a regulação da economia é uma corrupção do seu curso “natural”. A regulação, historicamente aquém dos avanços tecnológicos, tarda na resposta ao avanço destas forças, destes actores impulsionados e vitaminados pelo lucro, sobre as populações. “A culpa não é nossa”, diz ao P3, a partir dos arredores de Veneza. “Nós, população em geral, não somos os arquitectos da nossa condição. Nascemos num mundo onde as estruturas e dinâmicas já estavam criadas, pré-definidas.”

Traduzir em imagens conceitos que perdem, progressivamente, a sua matéria, a sua fisicalidade, foi um grande desafio para Cristiano Volk, que dedicou três anos à elaboração do projecto. Três anos de noite ininterrupta, conta. “Fotografei mais de 20 mil imagens sempre de noite.” A luz artificial é a chave do conjunto de 194 imagens que integra o livro, que realizou em vários países, entre os quais os Emirados Árabes Unidos, os Estados Unidos da América, a Áustria, Alemanha, Inglaterra, França, Polónia, Espanha, Croácia.

“Comecei por centrar-me nos néones, no lado glamoroso da luz nocturna – aí entra a imagem da beleza intemporal de Audrey Hepburn, por exemplo – mas cedo percebi que estava a perder grande parte do pesadelo que é inerente a essa artificialidade. Foi quando comecei a fotografar os arranha-céus à noite, em Londres, que percebi quão assustadores são. Dentro daqueles monstros de betão e vidro, às duas ou três da manhã, conseguia ver os poucos funcionários, agastados, que continuavam a trabalhar.” Assim, o italiano despertou para a linguagem que desejava adoptar, que contrapõe o tecnológico e o orgânico e sugere que alcançamos, finalmente, a distopia há muito profetizada por criativos e intelectuais dos séculos anteriores.

“Se pensarmos, há 20 anos eram poucas as pessoas que sequer tinham um telemóvel”, observa. “Hoje em dia, quase ninguém vive sem um smartphone. É tão omnipresente, tão vital, que se tornou, por exemplo, numa ferramenta de controlo de certificados de vacinação.” Volk quis debruçar-se sobre os malefícios da utilização dos dispositivos móveis sob o ponto de vista da pobre coesão social, do aumento da incidência de depressão e ansiedade entre as gerações mais jovens, para quem um smartphone é uma tido como uma extensão permanente do próprio corpo. Quis abordar o escapismo, a transgressão, a busca por contacto humano longe dos ecrãs, e as imagens que realizou no interior de discotecas de cidades europeias são exemplo desse retrato.

“Vivemos num mundo cada vez mais centrado no trabalho intensivo, na competição, no consumo. A escola é cada vez mais uma entidade corporativa que produz força de trabalho para exploração. Em vez de vivermos em cooperação, somos educados a competir; ser tornou-se menos importante do que ter. Essas são implicações, as consequências directas da intrusão e influência cada vez mais forte do capitalismo sobre as nossas vidas. Fomos educados para acreditar, como afirma Mark Fisher, autor do conceito de realismo capitalista, que não existe alternativa ao sistema capitalista. Mas será mesmo assim?”

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