terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A Indiferença Perante um Fotógrafo que Morreu de Frio


O fotógrafo suíço René Robert morreu de frio no dia 19 de Janeiro, numa rua de Paris. Tinha 84 anos e terá caído e permanecido em sofrimento durante algumas horas sem que ninguém o tivesse ajudado. Um trágico acontecimento que é bem revelador da desumanização que prospera nos múltiplos contextos em que vivemos, em particular nas grandes cidades. Uma manifestação de indiferença que não pode deixar de nos interpelar profundamente.

A atitude de alheamento face à pobreza e à própria violência corre o risco de ser encarada com uma certa normalidade, em particular nas sociedades que incentivam uma organização e uma cultura individualista. Perante as situações que não conhecemos ou que não são próximas, torna-se mais fácil afastar a realidade que incomoda e deixá-la medrar em redomas convenientes e distantes. São muitos os países e as grandes cidades onde é comum identificar ou mesmo isolar os lugares e os bairros reservados às comunidades mais pobres e vulneráveis da sociedade.

A indiferença perante “o outro” que o caso de René Robert simboliza, não pode ser percebida como um atributo intrínseco do ser humano; ela é cultivada socialmente. Afastamo-nos porque receamos que a situação nos afete de alguma maneira, ou simplesmente porque receamos a intromissão na esfera privada, mas esta atitude reforça um sistema que fomenta o individualismo e normaliza o abandono e a indiferença, especialmente com os mais vulneráveis. Em Portugal, quando encontramos uma pessoa doente na rua, o nosso primeiro impulso será provavelmente o de chamar uma ambulância, mas fazemo-lo com a segurança de dispormos de um serviço de saúde público acolhedor e universal, que favorece uma relação de confiança. Se não tivéssemos esse privilégio, como em tantos países em que não existe um serviço público de saúde competente ou disponível, talvez não agíssemos assim; talvez prevalecesse a indiferença e o incentivo ao abandono. Esta dimensão humana e humanizante, e o benefício coletivo que ela consagra, é também a força e alicerce moral de um serviço público de saúde e de educação que importa salvaguardar.

É verdade que há diferenças entre países e entre sociedades, mas são muitos os sinais que convergem para uma tendência geral no sentido de uma maior indiferença face à pobreza. Percebe-se uma progressiva atomização social que é capaz de nos apodrecer por dentro enquanto se destroem os vínculos coletivos. Estas atitudes de indiferença na comunidade, revelam ainda um preocupante enfraquecimento e transformação das nossas sociedades democráticas.

É urgente repensar e renovar o papel do estado na economia e na sociedade e, acima de tudo, recuperar e valorizar o sentido do interesse público. A mudança terá que passar por políticas orientadas para um crescimento menos desigual, verde e sustentável, em benefício de todos, e dando resposta aos grandes desafios da sociedade. Os investimentos pós-pandemia, que em Portugal se iniciam com o PRR - plano de recuperação e resiliência, devem ser orientados por uma economia de missão e inspirados pela agenda para o desenvolvimento sustentável. Uma agenda política ambiciosa e coerente, capaz de impulsionar um conjunto de programas de investimento público consistente, visando erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades, e instituir um caminho de afirmação política para o bem comum.

Helena Freitas, Diário de Coimbra, 1.2.2022

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