Entrevista concedida pelo biólogo Edward O. Wilson ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).
Edward Wilson é um dos maiores cientistas do nosso tempo, fundador de uma ciência, a sociobiologia, e hoje é um ativista do meio ambiente, tema desta entrevista. Ele publicou agora o livro Half-Earth – Meia-Terra – A luta do nosso planeta pela vida, que é um manifesto em defesa da biosfera, em defesa da biodiversidade.
Ele começou como um dos cientistas mais importantes na área dele, entomologia, estudo dos insetos, e aos poucos ele foi se tornando um escritor que abordou outras áreas, e agora ele é um lutador, um campeão da luta pelo meio ambiente.
Jorge Pontual — Como o senhor passou de cientista, de um entomologista de destaque, para ativista?
Edward O. Wilson — Toda criança tem um interesse inato, hereditário, no DNA, pela natureza. Só que nós o sufocamos mergulhando a criança na sociedade moderna, longe da natureza, na maioria dos países do mundo. Eu tive a grande sorte de crescer no Alabama, que fica bem no Sul dos Estados Unidos, e pude ter acesso na infância a ambientes naturais muito bonitos: pântanos, florestas, córregos extensos. E muito cedo, quando eu tinha apenas 8 ou 9 anos, decidi que queria passar o resto da vida na natureza. Eu até decidi nessa idade extremamente precoce que queria ser entomologista e estudar os insetos. Eu fiz isso e, conforme o tempo foi passando, a criança naturalista se tornou um estudante de história natural e o estudante de história natural se tornou um cientista. Mas, conforme trabalhei ao redor do mundo, eu percebi — não dava para não perceber — que a humanidade, as pessoas, estavam destruindo as florestas, dilacerando os ambientes naturais que eu amava, e faziam isso sem salvar muita coisa. Então, depois dos 30 anos, lá pelos 30, 35, 40 anos, eu também me tornei ambientalista, que significa principalmente uma pessoa preocupada com a perda da biodiversidade, a diversidade biológica, com a variedade de vida. Eu percebi que não estávamos apenas destruindo habitats e ecossistemas como a floresta, poluindo rios, etc., mas também extinguindo espécies.
Jorge Pontual — Todas essas espécies que existem, e são milhões delas, são como campeãs que sobreviveram a bilhões e bilhões de anos de processo evolutivo, não é?
Edward O. Wilson — É uma boa forma de descrever, que nós, o Homo sapiens, a nossa espécie, somos os grandes vencedores da Olimpíada do Mundo. Isso significa dizer que descendemos de espécies que estavam em processo de extinção. As espécies vivem, dependendo do tipo de animal, mamífero, borboleta ou ave... As espécies vivem em média meio milhão de anos ou até um milhão de anos, às vezes mais tempo. E, com o passar do tempo, dezenas e centenas de milhões de anos, claro que a maioria delas foi morrendo, mas, conforme morriam, outras espécies se dividiam em duas ou mais e a linhagem da extinção natural persistia. Mas só cerca de uma entre um milhão de espécies por ano se extinguia. Hoje essa proporção aumentou para mil por ano. De qualquer forma, ao longo da história, apenas poucas dessas linhagens sobreviviam para produzir novas espécies. Daí a maioria delas morria e assim continuava. Então era como entrar num labirinto. Você entra e tenta sair por aqui, mas, quando chega a certo ponto, tem de virar para a esquerda. Se não virar à esquerda, você morre.
Jorge Pontual — Por que o título Half-Earth, ou Meia-Terra?
Edward O. Wilson — A ideia é mostrar como salvar todas as outras espécies, ou pelo menos 80% delas. Até hoje, os movimentos conservacionistas fizeram coisas muito positivas, e é claro que o mundo reconhece que o Brasil é um dos líderes desse movimento, criando grandes reservas na Amazônia. A Amazônia é uma região importantíssima e necessária para a existência do Brasil, mas também é necessária para a existência do mundo. É uma floresta tropical imensa e vital.
E nós, atualmente, estamos na seguinte situação. Vou lhe dar os fatos para que você entenda do que estou falando. Os cientistas descobriram que têm alguma informação sobre apenas pouco mais de dois milhões de espécies de todos os tipos: plantas, animais, e fungos e bactérias. Dois milhões. Mas nós estimamos que existam dez milhões, e estamos apenas começando a estudar e a descobrir todas essas espécies novas. Algumas nem são novas; têm milhões de anos. Mas para termos um quadro completo dos seres vivos... É por isso que recorremos ao Brasil. Eu tive o grande prazer de trabalhar na Amazônia e também no cerrado, que tem um ambiente vivo riquíssimo. Nós só conhecemos... Pelo menos 80% das espécies são desconhecidas! Este é um planeta pouco conhecido.
A perda do habitat, a remoção de florestas, a poluição de rios, a destruição dos habitats, cada vez menos áreas para as espécies habitarem, é isso que mata a maioria das espécies. Então faz sentido termos reservas muito mais vastas. E agora a minha sugestão é que metade do planeta, tanto da terra quanto do mar, componha uma reserva. E essa sugestão foi recebida, até agora, positivamente por outros cientistas e conservacionistas. Sim, precisamos de um objetivo ousado. Precisamos de algo grande que possamos atingir. Quando conseguirmos, teremos salvado as espécies. Portanto, metade. Metade é possível? Claro que é!
Eu fui surpreendido pelo fato de o livro ter sido recebido com entusiasmo pela comunidade conservacionista. Eles gostam da ideia de uma proposta ousada e de algo grande para reivindicar. O ser humano foi feito para... Está no nosso coração, na nossa emoção. Gostamos de estabelecer um objetivo ousado e lutar em conjunto para atingi-lo. Devo mencionar a Olimpíada do Brasil? Uma história de sucesso, e fez toda a diferença. Precisamos de uma história de sucesso na conservação. Estou me lembrando de outro paralelo em termos de exaltar o espírito humano e transformar num objetivo ousado a direção que devemos seguir. John Kennedy, em 1963, disse: “Nós vamos tentar chegar à Lua”. Ele não disse: “Nesta década, nós vamos progredir muito na tentativa de chegar à Lua”. Ele não disse isso. Ele disse: “Até o final desta década, vamos levar um homem à Lua e trazê-lo de volta”. E nós conseguimos! Eu acho que o espírito é o mesmo.
Discurso de John F. Kennedy – “Nós escolhemos ir à Lua! Nós escolhemos ir à Lua nessa década e fazer outras coisas. Não porque elas sejam fáceis, mas porque são difíceis! Porque esse objetivo servirá para organizar e definir as nossas melhores energias e habilidades.”
Jorge Pontual — Mas qual seria o prazo para o Meia-Terra?
Edward O. Wilson — Agora sim. Ainda não decidimos, mas podemos fazer isso em dez anos. Vou lhe dar um exemplo: o mar. Apenas 3% dos mares do mundo são protegidos hoje pelas nações territoriais, aquelas que têm litoral e mares territoriais. Elas são chamadas de zonas econômicas de exclusão. E representam esses 3%. Como vamos passar de 3% para 50%? Agora vou surpreendê-lo com a resposta. É fácil. Basta...
Dois estudos chegaram à mesma conclusão sobre os peixes e as outras espécies marinhas. Basta proibir a pesca em mar aberto, fora das zonas territoriais dos países. Se pararmos... O mar aberto não é de ninguém. Qualquer um pode pescar lá, e todo mundo pesca. E vemos a vida marinha encolhendo enormemente.
Se proibíssemos isso, o mar aberto se tornaria um grande viveiro de imensas quantidades de peixes e vida marinha. E as espécies se espalhariam pelas águas territoriais por causa das correntes e da capacidade desses organismos de se deslocar rapidamente pela água. E, se proibíssemos a pesca no mar aberto, o resultado seria que a quantidade total de espécies pescadas pela indústria, a diversidade e a quantidade de vida marinha nas águas territoriais do mundo todo aumentariam.
Jorge Pontual — O senhor criou o conceito da biofilia. O que é isso?
Edward O. Wilson — Eu introduzi o termo biofilia em 1983. Porque percebi, naquela época, que provavelmente havia um fundo de verdade na opinião generalizada, principalmente entre poetas e amantes da natureza, de que existe algo hereditário, algo no nosso DNA, que nos faz reagir muito intensamente à natureza, nos faz amar a natureza. Então eu disse, à época: “Acho que devemos procurar um instinto que as pessoas têm, com o qual elas nascem, no qual a natureza nos é naturalmente atraente”.
Isso fazia sentido porque nos 100 mil anos que os humanos habitam a Terra e antes, quando nossos ancestrais estavam evoluindo, eles viviam na natureza, então nós somos fortemente adaptados a certos tipos de natureza. O cerrado é um exemplo de ambiente natural para os humanos. Então, por que não? Todas as outras espécies animais que foram estudadas têm fortes preferências por certos ambientes. Solte-as e elas vão diretamente para seu ambiente natural. Por que não os humanos? Isso já foi confirmado. Foi provado de forma sólida, com evidências médicas, que simplesmente estar perto da natureza, só olhar pela janela e ver a natureza acelera a recuperação de pacientes de cirurgias, acalma pessoas com estresse e doenças mentais e é bom para a saúde.
Além disso, estamos começando a entender que certos tipos de ambientes muito parecidos com a savana africana, onde a humanidade evoluiu... Isso se chama “a hipótese da savana”, e surgem cada vez mais evidências dela: os seres humanos preferem naturalmente primeiro pela natureza, mas depois principalmente um lugar alto do qual eles vejam a natureza quando olham para baixo. Eles veem um parque, um monte de árvores, um bosque, um gramado... Algo parecido com a savana africana. E eles também querem estar perto de um corpo d’água: um rio, um lago, um oceano.
Eu dei uma palestra sobre esse assunto. Pesquisas e estudos experimentais comprovaram que esse é o ambiente humano ideal. Uma vez eu dei uma palestra para um grupo de arquitetos especializados em projetar ambientes para pessoas. Notei que alguns dos melhores arquitetos fazem exatamente isso. Eles lhe dão um laguinho, põem você perto de um rio, projetam uma bela casa no alto de uma colina. E, na palestra, percebi que pouca gente reagia. Então comentei com um amigo arquiteto: “Acho que não fui claro o bastante ou então falei mal”. Ele disse: “Nada disso. O problema é que nós já sabíamos tudo isso”.
Jorge Pontual — O senhor teve a ideia de uma aliança entre ciência e religião para salvar a Criação.
Edward O. Wilson — Sim. Eu disse a mim mesmo: “Se conseguirmos atrair a comunidade religiosa dos EUA...”. A grande maioria das pessoas pertence a alguma fé religiosa. Eu fui criado como protestante, evangélico. “Se conseguíssemos uma aliança entre os cientistas que defendem a conservação por todos os motivos que expliquei e fieis e líderes religiosos, poderíamos conquistar coisas incríveis.”
Então escrevi um livro que era uma carta a um líder religioso fictício. E eu disse: “Nós temos pontos de vista muito diferentes sobre como o mundo funciona e de onde viemos, mas deixemos isso pra lá. Podemos ser amigos se conversarmos sobre isso e, juntos, nós podemos salvar a Criação. Você vai salvá-la porque ela é um presente de Deus, eu vou salvá-la porque é necessário para continuarmos existindo”. “Eu acredito que nós temos um direito religioso muito forte.” Os conservadores dizem. E, como um deles disse: “Fomos colocados neste planeta para salvar almas, para ir para o Céu. Não fomos colocados aqui para salvar animais e plantas”. Quando isso começou a se espalhar, a ideia morreu.
Jorge Pontual — O senhor é o fundador de uma ciência, a sociobiologia, e já escreveu muito sobre a natureza humana. Vários livros. O que nós aprendemos com a sociobiologia sobre a natureza humana? Quais são os principais pontos?
Edward O. Wilson — O que aprendemos sobre a natureza humana com a sociobiologia, que é a disciplina científica que estuda a base biológica de todos os tipos de comportamentos sociais, inclusive os comportamentos sociais humanos, como a cultura. Ela se tornou controversa porque as pessoas não queriam acreditar que nós temos instintos como os animais, mas temos. Enfim, ela tem valor, porque é necessário explicar de onde nós viemos e por que somos como somos. Precisamos de um melhor autoconhecimento, precisamos saber exatamente como nos sentimos, quais são nossas emoções e por quê, como foi a longa história que criou essa máquina emocional que conduz a nossa vida além do intelecto.
Jorge Pontual — Por que o senhor é otimista?
Edward O. Wilson — Nasci assim. Eu simplesmente penso: “Qual é a alternativa?”. Os seres humanos são muito inteligentes e muito flexíveis. Os seres humanos aprendem e podem se adaptar, e acho que vamos aprender e nos adaptar aos problemas atuais, mesmo que eles pareçam muito difíceis.
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