Daniel Oliveira
Expresso, 08.01.2021
Para quem julga que as palavras não são atos, aqui está a resposta. As palavras de Trump foram criando um caldo de fanatização que só poderia acabar nisto. O ódio subterrâneo medra em muitos outros pontos do mundo. Por cá também. Mas Trump não alimentou esta tentativa de golpe de Estado sozinho. Tal como cá, não foram apenas as convicções que excitaram os incendiários. Nem apenas a loucura de Trump. Também foi o oportunismo puro de homens como Ted Cruz
Marcelo Rebelo de Sousa disse, no debate desta quarta-feira, onde até se distinguiu de forma cristalina de André Ventura em questões essenciais, que nenhum eleito punha em causa a democracia. No mesmíssimo momento, um grupo de apoiantes de Trump invadia o Capitólio, acicatados por um homem que foi eleito há quatro anos. Nada distingue moral ou politicamente um eleito de um não eleito. O que os distingue é a legitimidade para ocuparem o cargo. Está longe de ser um pormenor, mas o mais perigoso dos tiranos pode chegar ao poder pelo voto. Como se vê por Trump, é quando tem de sair que é testado. E quando exerce o poder, claro está.
Não estava escrito em nenhum guião que as cenas inacreditáveis que vimos ontem em Washington eram para acontecer. Para quem julga que as palavras não são atos, aqui está a resposta. As palavras são atos. E as palavras de um político, ainda mais se for Presidente, podem ser atos perigosos. As palavras de Trump foram criando um caldo de fanatização que só poderia acabar assim. E podemos agradecer a sua derrota ter sido larga. Tivesse sido por pouco e os EUA estariam hoje a ferro e fogo.
Mas Trump, que devia ser julgado por incitamento à insurreição violenta, não se fez sozinho. Não alimentou esta tentativa de golpe de Estado sozinho. O comportamento de Ted Cruz, um antigo opositor meramente oportunista do ainda Presidente, é um excelente retrato de quem faz estes tristes momentos.
De quem os fez nos últimos quatro anos. Não se importou de pôr Washington a ferro e fogo, tentando segurar a base de apoio de Trump para si mesmo. Tal como cá, não são apenas as convicções que movem estes incendiários. Nem sequer é apenas a loucura de Trump. É oportunismo puro.
Claro que isto pode bem ser um estertor desesperado do trumpismo. Mike Pence abandonou o seu Presidente, o Partido Republicano está a partir-se e muitos temem a proximidade tóxica de Trump. Os democratas conseguiram uma surpreendente vitória no Senado, depois da segunda volta na Geórgia. Mas a semente ficou. O precedente foi aberto. O ódio subterrâneo lá está, com profundas cumplicidades nas forças de segurança e no coração do regime. E medra em muitos outros pontos do mundo. Por cá também.
André Ventura debateu ontem com o Presidente da República. Nem uma única pergunta lhe foi feita sobre o comportamento daquele que ativa e explicitamente apoiou durante os últimos anos. Não seria uma pergunta para o embaraçar. Seria uma pergunta para o confrontar com as repercussões do discurso de ódio que ele próprio alimenta aqui. Os grupos de fanáticos que aqui está a criar. As palavras que hoje diz que serão atos no futuro.
“Trump representa a tradição constitucional de uma América assente na iniciativa e responsabilidade individual. Faz sentido para alguém que preza essa continuidade e essa América votar em Trump.” Escreveu Rui Ramos em outubro. Estou ansioso por ler mais coisas dele sobre a boa tradição constitucional. Dele e de toda a direita “Ted Cruz”, que por puro oportunismo político se dedicam, fora e dentro de portas, a normalizar esta gente. São inimigos da democracia. Cúmplices.
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