Por Helena Araújo
O José Rodrigues dos Santos publicou um esclarecimento sobre a polémica das "motivações humanistas dos nazis".
A primeira recomendação que nos faz é que comecemos por assistir à entrevista completa, que está disponível aqui: https://www.rtp.pt/play/p6646/e507120/grande-entrevista
Assisti à entrevista toda. E concordo: o vídeo que partilhei ontem cortava a frase do contexto. Em nome da verdade, aqui deixo a passagem completa: [A partir de 17:05] E também, é preciso dizer, que o próprio processo de decisão do extermínio dos [judeus] foi uma coisa gradual. As pessoas pensam "não, os nazis chegam ao poder" - isso é o que nos é dito no discurso político-mediático - chegam ao poder e querem matar logo os judeus todos. Isso não é verdade. Aliás, há declarações do Göring antes de a guerra começar a dizer "não podemos matar os judeus", e uma afirmação do Himmler, em 1940, portanto depois de a guerra começar, a dizer "não se pode matar os judeus, temos é de os expulsar, deportar para fora daqui, não podemos matá-los", e portanto, aquilo foi um processo gradual, em que a certa altura alguém diz "eh pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Temos... pá, se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?" Portanto, o raciocínio é assim em 41 - eles já dão um passo que em 40 não tinham dado. Portanto, é um processo gradual também de adaptação.
Se estiver errada agradeço que me corrijam, mas o que entendo desta sequência de frases é que, na versão do Holocausto de José Rodrigues dos Santos, este decorreu da seguinte maneira: em 1940 as chefias nazis não pensavam ainda em matar os judeus, apenas queriam expulsá-los da Alemanha; as câmaras de gás resultaram de uma preocupação humanitária que surgiu em 1941, porque não era possível alimentar todos os judeus nos guetos, e morrer de fome não é uma forma muito humana de ser assassinado.
(Tantos historiadores a dedicar a vida inteira ao estudo do Holocausto, quando ao Rodrigues dos Santos basta um part-time de alguns meses para descobrir que estão todos errados, e que os seus erros estão a inquinar o discurso político-mediático...)
Há outra passagem da entrevista que também é muito reveladora: [A partir de 15:06] - Em situação limite as pessoas habituam-se a tudo, mesmo ao horror absoluto? - Sim, o aspecto de normalização dos campos de concentração é um factor muito interessante e muito presente no livro. Nós vemos no livro que há ali uma máquina que está montada e que é quase como quem vai para o trabalho. - Que as pessoas se adaptam àquela vida... - Não, são dois aspectos. Primeiro é os que fazem - aquilo é um trabalho. Eles vão lá fazer um trabalho. E na verdade, já quando escrevi o "Fúria Divina" sobre o jihadismo me confrontei com a mesma coisa. Por exemplo movimentos como a Al-Qaida têm um aspecto organizacional em que fazem operações de marketing, de recolhas de fundos, fazem banquetes, etc. para angariar apoiantes e fazer a apologia das suas ideias, como uma organização, como se fosse a Coca-Cola. É um bocado isso. E nós vamos encontrar o mesmo tipo de estrutura burocratizada nos campos de concentração, neste caso nacional-nacionalistas. Chegou ao ponto em que tinham um bordel no campo, que aliás aparece no romance, tinham uma piscina para os prisioneiros - e o bordel era para os prisioneiros, atenção. Uma escola para as crianças judias no Familienlager, em Birkenau. E nós ficamos assim um bocado... Quer dizer: havia uma normalização disso. Por outro lado, também, o ser humano revela - e no romance isso fica muito claro, mas também encontramos isso em muitas situações da vida - o ser humano tem uma enorme capacidade de se adaptar às situações. Eu lembro por exemplo que o Werner Reich, que era aquele judeu que era mágico e conheci no programa do Luís de Matos, o sobrevivente, que me disse "eu a primeira vez que vi um cadáver fiquei horrorizado. Depois vi o segundo, e ao décimo cadáver a gente via, começou a tornar-se uma coisa rotineira. Cheguei a um ponto em que estava a assistir a um enforcamento e estava a palitar os dentes. Porque as pessoas têm essa adaptação às situações. Mesmo as mais radicais. De início parece que... e no fundo, ao ler o livro, vemos que é uma queda progressiva para o abismo.
(Muito gostava eu de saber quanto é que a Pepsi pagou para ter alguém na RTP a meter Auschwitz, a Al-Qaida e a Coca-Cola na mesma frase...) Se bem entendi da entrevista: todos os elementos que asseguravam o funcionamento dos campos encaravam o que estavam a fazer como um mero trabalho. Ser guarda em Buchenwald ou contabilista na Coca-Cola ou agente de marketing da Al-Qaida: tudo igual. (E é claro que é indiferente chamar ao local de trabalho "Coca-Cola" ou "Dezimierungsghetto"/gueto de dizimação ou "Vernichtungslager"/campo de extermínio...) (embora pessoalmente tenha algumas dúvidas sobre ser normal na Coca-Cola alguém "encontrar" regularmente objectos de ouro que leva para casa, ou receber ordenado dobrado por "certas" tarefas mais pesadas, como por exemplo, sei lá, matar pessoas...) Se bem entendi da entrevista: em Auschwitz havia uma piscina e um bordel para os prisioneiros judeus, e as crianças iam normalmente à escola. (Caramba, que seria da investigação do Holocausto sem os contributos inteiramente inovadores do José Rodrigues dos Santos? Ele descobriu coisas fantásticas que mais ninguém sabia.) (Ai, alto, afinal há muito quem conheça estes factos. Volta e meia cruzo-me com eles nas redes sociais: são os que dizem que Auschwitz não é nada tão mau como se diz, que até tinha bordéis e hospitais, e que a história das câmaras de gás é um mito.)
A segunda recomendação que José Rodrigues dos Santos nos faz é esta: "para saberem exatamente o que eu penso sobre o Holocausto, devem ler os dois volumes da obra em causa na íntegra. É fácil, podem encontrá-los em qualquer livraria ou biblioteca."
Segue-se o esclarecimento sobre a frase “A certa altura há alguém que diz – Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?” Como é que explica esta frase? Antes de mais, remetendo para a leitura dos seus dois livros ("O problema destes comentários é que eles ignoram um facto evidente para qualquer pessoa de boa fé que veja toda a entrevista e que leia os dois volumes da minha obra na íntegra: em momento algum eu defendi que os gaseamentos eram humanitários.") A seguir, José Rodrigues dos Santos informa que "esse raciocínio está plasmado no primeiro documento nazi existente a preconizar explicitamente o extermínio dos judeus. Esse documento foi enviado de Poznan a Adolf Eichmann a 16 de julho de 1941 pelo oficial SS Rolf Hoppner".
Caso para perguntar: defina "primeiro documento nazi existente". Aparentemente, o Mein Kampf não conta. Os discursos do Hitler não contam. O alargamento do programa de "eutanásia" T4 aos judeus polacos, assinado por Hitler em Outubro de 1939 com a data da invasão da Polónia não conta. Os massacres de judeus que se multiplicaram logo após a invasão da Polónia e cresceram ainda mais após a invasão da União Soviética não contam. A ordem de Heydrich, em Junho de 1941 de, após a invasão da União Soviética, matar todos os judeus que pertençam ao partido ou ao aparelho de Estado e dar discretamente apoio a pogroms anti-semitas não conta. O diário do Goebbels não conta. Nada conta, excepto o documento de fino recorte humanitário enviado em Julho de 1941 a Eichmann (aqui, em alemão), que traduzo:
"Assunto: Solução para a questão judaica
Em reuniões na Reichsstatthalterei, vários elementos falaram da solução da questão judaica no Reichsgau de Wartheland. Propõe-se a seguinte solução:
1. Todos os judeus de Warthegau serão levados para um campo com capacidade para 300.000 judeus, que será construído em forma de barracas tão perto quanto possível da linha de comboio Kohlenmagistrale, e no qual haverá barracas para actividades económicas, salas de costura, sapateiros, etc.
2. Todos os judeus de Warthegau serão levados para este campo. Os judeus capazes de trabalhar podem integrar piquetes de trabalho para trabalhar fora do campo, segundo as necessidades.
3. Segundo o SS-Brigadeführer Albert, um campo deste tipo pode ser controlado por um número muito menor de forças policiais do que o actualmente necessário. Além disso, o perigo de epidemias que actualmente existe para as populações vizinhas de Litzmannstadt (Lodz) e de outros guetos é reduzido ao mínimo.
4. Existe o risco de neste Inverno não ser possível continuar a alimentar todas as pessoas. Deve ser seriamente ponderado se não será uma solução mais humana recorrer a um qualquer expediente rápido para acabar [em alemão: erledigen] com os judeus não aptos para o trabalho. Em todo o caso, isso seria mais agradável que deixá-los morrer de fome.
5. Além disso, foi sugerido esterilizar todas as mulheres judias que ainda estão em idade fértil, para que a questão judaica fique de facto definitivamente resolvida com esta geração.
6. O Reichstatthalter ainda não se pronunciou sobre este assunto. Tem-se a impressão que o Regierungspräsident Uebelhoer não deseja o desaparecimento do gueto de Litzmannstadt (Lodz), uma vez que parece lucrar muito bem com ele. Para dar um exemplo dos ganhos com os judeus, foi-me dito que o Ministério do Trabalho do Reich paga de um fundo especial 6 RM por cada judeu que trabalha, quando o judeu custa apenas 80 Pfennig." É certo que cada pessoa lê e interpreta como quer ou como pode. José Rodrigues dos Santos leu este documento e interpretou-o como sinal da passagem para uma nova fase da Solução Final, a partir de uma certa preocupação de ordem humanitária. Sim, também li as palavras "solução mais humana" naquele texto. O problema é que li o resto do texto, e como o próprio José Rodrigues dos Santos diz, é muito feio tirar as palavras do seu contexto para fazer passar a narrativa que convém.
4. A explicação de José Rodrigues dos Santos estende-se agora até ao gulag, numa ponte que reforça a ideia de que não há diferenças substanciais entre Auschwitz e o Gulag. Ele lá sabe as ideias que quer fazer passar.
5. Sobre o esoterismo dos nazis, passo, que já gastei demasiado tempo com estes disparates.
6. Finalmente, a última recomendação de José Ferreira dos Santos, que Kafka seria capaz de subscrever (se não estivesse a dar voltas no túmulo): Quanto ao resto... meus amigos, leiam O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau. “Penso que apenas devíamos ler livros que nos mordem e que nos perfuram”, recomendou Kafka. “Se o livro que estamos a ler não nos abala e desperta como uma marretada no crânio, para quê lê-lo?”
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Ontem, um amigo tentou fazer-me ver a "mímica de mentiroso" e convencer-me de que aquelas frases sobre as motivações humanitárias das chefias nazis para criarem as câmaras de gás não foram um faux pas, mas uma formulação deliberada. Rebati, porque me custa fazer tamanha insinuação. Mas hoje, ao ver que a justificação dada para aquela frase inclui três apelos a que leiam os dois livros dele, pergunto-me se as redes sociais não fizeram o papel de idiota útil, tornando José Rodrigues dos Santos o tema do dia. Como é que dizia o outro? "Mission accomplished".
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