Uma cidade inteligente não precisa de expulsar os carros – apenas limitar a atividade destes ao estritamente necessário. “Como desenhar um ecossistema urbano seguro para peões, ciclistas e utentes de micromobilidade”? Começando a desenhar as urbes pelos passeios.
Hoje falamos em cidades inteligentes porque durante demasiado tempo andamos a desenhar cidades estúpidas. Para corrigir erros, é necessário desenhar as cidades ao contrário: dos passeios para as ciclovias e só depois para as faixas rodoviárias, para os carros, que não têm de ser banidos dos centros urbanos, apenas limitados à sua função utilitária. Eis uma conclusão forte do painel “Como desenhar um ecossistema urbano seguro para peões, ciclistas e utentes de micromobilidade”, na Portugal Mobi Summit.
“Acabámos de aprovar ‘Velocidade 10’ em toda a zona de plataforma única, onde o tráfego pedonal é maioritário. Não se trata de uma cidade sem carros, mas de uma cidade com carros necessários para que a cidade funcione”, disse Miguel Anxo Fernández Lores, alcaide de Pontevedra, cidade da Galiza que “há 10 anos que não tem nenhum morto por atropelamento automóvel no centro da cidade”.
Pontevedra foi muito elogiada neste debate, por ter devolvido o espaço público aos cidadãos e restringido o acesso aos carros.
E como? “Tenho que dizer que tudo responde a um projeto, que foi elaborado na oposição, onde se aprende muitas coisas. Foram 12 anos na oposição e depois construímos uma cidade pensada para as pessoas. Em 1999, era um armazém de carros, engarrafada, cheia de ruídos”, explicou o presidente da câmara da cidade galega.
“Gosto de meter o dedo no olho. As grandes superfícies. Não posso dizer que sou a favor das pessoas quando não coloco entraves ou a favoreço instalação de grandes superfícies”, disparou Miguel Anxo Fernández Lores, que revelou que na base do pensamento estratégico nunca esteve “resolver o problema dos carros, mas recuperar o espaço público para as pessoas”. “É uma coisa diferente”, acrescentou.
Rui Rei, Director of Business Development da CEiiA, concorda: “É preciso que as cidades sejam apropriadas pelas pessoas. Cidades que eram selvas humanas e possam agora ser espaços para conviver, partilhar”.
Para isso é preciso um bom planeamento e usar as tecnologias, não ser escravo delas. “Andámos a construir cidades estúpidas durante muito tempo e agora temos de falar em idades inteligentes. Mas a tecnologia só é importante para gerar informação que permita tomar informações corretas, como no controlo de tráfego”, acrescentou Rui Rei.
E juntou ainda que é preciso convencer as pessoas dos benefícios de “reduzir o acesso aos carros ou até o interditar”. “Para irmos além da mobilidade e ir à sustentabilidade, como incentivar cidadãos? Premiá-los pela não emissão poluente, que pode ser medida precisamente através de ferramentas geradas pela tecnologia”, defendeu o Director of Business Development da CEiiA.
“Uma cidade inteligente é a que copia as boas ideias das outras”, assumiu o Miguel Gaspar, vice-presidente da Câmara de Lisboa com os pelouros da Economia, Inovação, Mobilidade e Segurança. “Lisboa já copiou orgulhosamente de muitos sítios, e espero que muitos possam também copiar de Lisboa”, concretizou.
“Em Lisboa, quando nasci, havia 170 carros por mil habitantes. Há pouco, esse rácio já era de 550 carros por mil habitantes. Uma cidade apetecível é a que protege os mais vulneráveis, como os peões, crianças e mais idosos”, defendeu o autarca.
“O nosso compromisso é o de entregar uma cidade melhor aos nossos filhos e netos em 2030. O meu problema de mobilidade resolve-se na área metropolitana e só depois em Lisboa. E estamos a aumentar em 40% a rede de autocarros na área metropolitana. O transporte público, no curto e médio prazo, pelo menos, é estruturante”, sublinhou Miguel Gaspar.
Quanto às bicicletas: “A maior parte das pessoas faz menos de 5 quilómetros a pé, podem fazer esses percursos de bicicleta. Se queremos que todas o façam? Não, achamos é que há um capital de transferência [dos transportes mais poluentes]. Mas o que queremos é dar essa decisão aos cidadãos. Se vão de bicicleta, transportes públicos ou outros meios menos poluentes”, assumiu o vice-presidente da Câmara de Lisboa.
Ou seja, no fundo trata-se de uma estratégia de prioridades: primeiro as pessoas, depois as máquinas. E antes de tudo, um planeta mais saudável, que gerará cidadãos mais saudáveis.
“Tendo em conta o paradigma que dá prioridade aos modos ativos, é fundamental pensar na forma como se desenham as cidades. Quando falamos do espaço público, estamos a falar necessariamente de desenhar o espaço público. Às vezes, os argumentos que os arquitectos usam não são convincentes, mas a Covid deu-nos isso, a valorização do espaço público”, explicou David Vale, professor assistente da Escola de Arquitectura da Universidade de Lisboa.
Em termos urbanísticos, portanto, “implica um desenho das cidades ao contrário”. “Normalmente, o desenho da rua começava nas faixas de rodagem dos carros e o que sobrava eram os passeios. O que é preciso é o contrário. Primeiro, desenhar o passeio, depois os corredores de bicicletas e só depois o espaço para carros”, defendeu o professor.
E concluiu: “Temo de trabalhar com o que existe, dando prioridade ao peão. Começando por desenhar o passeio, o espaço das bicicletas e depois o dos carros. Não vamos acabar com os carros, os carros necessários continuarão a circular nas cidades. Mas se queremos uma cidade mais multimodal, em modos articulados, temos de pensar as cidades para que uma pessoa agarre numa bicicleta, entre no comboio e depois vá a pé”.
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