segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Investigação do Consórcio de Jornalistas. Grandes bancos facilitam branqueamento de capitais


Uma análise a documentos confidenciais produzidos por vários bancos nos Estados Unidos e enviados à agência federal FinCEN mostram como grandes bancos facilitaram o branqueamento de capitais, segundo o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ).


"Os lucros das guerras mortíferas da droga, as fortunas desviadas de países em desenvolvimento e as economias duramente ganhas e roubadas através do esquema de pirâmide Ponzi têm sido capazes de entrar e sair das instituições financeiras, apesar dos avisos dos próprios funcionários dos bancos", detalha a investigação realizada por 108 media internacionais, de 88 países, entre os quais o Expresso, divulgada este domingo.

Fuga de informação na origem da investigação

A investigação, coordenada pelo consórcio ICIJ (na sigla inglesa), teve como base uma fuga de informação de mais de 2.100 relatórios confidenciais produzidos por vários bancos nos Estados Unidos e que foram enviados originalmente para a agência federal FinCEN - Financial Crimes Enforcement Network -, a qual serviu de mote para o nome do projeto - FinCEN Files.

Os relatórios foram obtidos pelo BuzzFeed News, que os partilhou com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.

Os documentos analisados mostram que os bancos JP Morgan, HSBC, Standard Chartered Bank, Deutsche Bank e Bank of New Yor Mellon continuaram a beneficiar-se de jogadores poderosos e perigosos, refere a investigação, apontando que isso continuou mesmo depois de as entidades norte-americanas terem multado estas entidades financeiras por falhas anteriores em não congelar contas de dinheiro suspeito.

Agências norte-americanos não processam os grandes bancos

Segundo a investigação de 16 meses, cujas principais descobertas foram hoje publicadas, as agências norte-americanos responsáveis por fazer cumprir as leis de branqueamento de capitais "raramente" processam os grandes bancos que infringem a lei.

Conclui também que as ações das autoridades têm pouco impacto no enorme fluxo de dinheiro que flui pelo sistema financeiro internacional.

A investigação alerta ainda que, em alguns casos, os bancos continuaram a movimentar fundos ilícitos mesmo depois de as autoridades norte-americanas terem advertido que enfrentariam processos penais se não deixassem de fazer negócios com mafiosos, golpistas ou regimes corruptos.

Os movimentos do maior banco com sede nos EUA

De acordo com a análise, o JP Morgan, o maior banco com sede nos Estados Unidos, transferiu dinheiro para pessoas e empresas vinculadas ao saque maciço de fundos públicos na Malásia, Venezuela e Ucrânia, segundo os FinCEN Files.

O banco também processou mais de 50 milhões de dólares em pagamentos durante uma década a Paul Manafort, um ex-diretor da campanha do Presidente norte-americano, Donald Trump.

O consórcio adianta que o banco transferiu pelo menos 6,9 milhões de dólares em transações de Manafort nos 14 meses posteriores à sua renúncia da campanha.

"No total, os documentos identificam mais 2.000 milhões [de dólares] em transações entre 1999 e 2017 que foram identificadas por funcionários de instituições financeiras como possível lavagem de dinheiro ou outra atividade criminosa", adianta.

Os arquivos da FinCEN representam menos de 0,02% dos mais de 12 milhões de relatórios sobre atividades suspeitas que as instituições financeiras apresentaram à agência federal entre 2011 e 2017.

Num comunicado divulgado antes da investigação ser publicada, a polícia financeira do Tesouro dos Estados Unidos advertiu que a divulgação de relatórios de atividades suspeitas era um "crime" que "pode ter um impacto na segurança nacional" do país.

O envolvimento de Isabel do Santos e marido

De acordo com o Expresso, a filha do ex-presidente de Angola José Eduardo dos Santos "foi alvo de dois relatórios sobre atividades suspeitas em 2013 nos Estados Unidos, um do JP Morgan e outro do Standard Chartered" devido a "transferências ligadas à Unitel e ao negócio dos diamantes em que Sindika Dokolo foi sócio do Estado angolano".

Segundo o Expresso, o relatório tem dezenas de páginas e foi concluído em 16 de outubro de 2013: "É um dos dois documentos incluídos nos FinCEN Files que estão relacionados com Isabel dos Santos. Uma funcionária do departamento de 'compliance' do JP Morgan Chase Bank, nos Estados Unidos, enviou-o no dia seguinte para a FinCEN, a agência federal responsável por processar e reencaminhar suspeitas sobre potenciais esquemas de lavagem de dinheiro para eventual investigação pelas autoridades policiais".

Apesar de Isabel dos Santos, nem o seu pai serem clientes, "o relatório enviado à FinCEN mostra como o JP Morgan tinha estado envolvido indiretamente, como banco correspondente, em transferências relacionadas com a família e com o Estado angolano" e "houve uma transferência, em particular, que chamou a atenção do 'compliance' da instituição: Sindika Dokolo, o marido de Isabel dos Santos, tinha enviado em março de 2012 quatro milhões de dólares para uma conta de uma empresa holandesa, a Melbourne Investments BV, que passaram por uma conta correspondente do JP Morgan".

Ora, como o banco "foi incapaz de identificar qualquer outra transferência relacionada com a Melbourne Investments BV nem qualquer perfil público sobre ela, isso reforçou a possibilidade de se tratar de uma empresa de fachada sem nenhum propósito comercial", lê-se no relatório, citado pelo Expresso.

No âmbito do Luanda Leaks, outra investigação do ICIJ, já havia detalhes sobre aquele montante e sobre a Melbourne.

"Esse dinheiro foi usado por Sindika Dokolo para se tornar sócio da empresa estatal angolana Sodiam numa companhia de diamantes de luxo na Suíça, a De Grisogono. Durante essa investigação, aliás, todos os dados recolhidos indicaram que os quatro milhões de dólares teriam sido o único dinheiro colocado pelo marido nesse negócio, em contraste com os 147 milhões colocados pelo Estado angolano (apesar de Dokolo argumentar que investiu um total de 115 milhões), sendo que entretanto a De Grisogono abriu falência e a Sodiam ficou com uma dívida ao banco que Isabel dos Santos controlava em Angola, o BIC", refere o Expresso.

Tanto Isabel dos Santos como o marido têm negado, desde a investigação Luanda Leaks, qualquer irregularidade.

"Seja como for, a total ausência de informação à volta da Melbourne Investments levou o 'compliance' do JP Morgan a reunir no outono de 2013 tudo o que conseguia sobre o casal", acrescenta.

O relatório inclui uma lista de 26 entidades e pessoas - onde constam Isabel dos Santos, Sindika e José Eduardo dos Santos - que pudessem ser partes relacionadas, englobando a Galp em Portugal, onde a empresária tinha uma participação acionista indireta.

"Ao todo, o banco identificou um total de 829 milhões de dólares em transferências ocorridas entre 2005 e 2013 relacionadas com o universo dessas entidades, mas pôs de lado a esmagadora maioria delas e concentrou-se em rever apenas algumas dezenas de milhões", refere o Expresso.

Foram identificados movimentos efetuados entre 03 de julho de 2006 e 02 de março de 2012 de contas controladas por Sinkika Dokolo que passaram por contas correspondentes de bancos estrangeiros no JP Morgan.

"Além dos bancos EuroBIC, BPI, Deutsche Bank, em Portugal, e do BAI, do Banco Totta e do BESA, em Angola, o marido de Isabel dos Santos tinha nessa altura contas em Chipre (FMBE Bank), no Luxemburgo (Banque Pictet), em França (Credit du Nord) e no Congo (Banque Internationale pour L'Afrique au Congo, BIAC)", acrescenta.

"De acordo com o relatório encontrado nos FinCEN Files, foram detetadas entradas e saídas de 10 milhões de dólares nas contas de Dokolo durante esses seis anos, sendo que sete milhões corresponderam a saídas, a maioria delas a partir do EuroBIC, em Portugal, e do FBME, em Chipre", refere o Expresso.

A responsável pelo 'compliance' [que visa que a instituição cumpra as regras] "notou a existência de transferências regulares de 100 mil euros do FBME para o Banque Pictet no Luxemburgo, comentando que 'a frequência, o volume e o valor repetitivo, juntamente com as diferentes localizações dos bancos, indicam possivelmente uma tentativa de fragmentar o movimento de fundos para esconder a materialidade geral dos fluxos de dinheiro e evitar que isso seja alvo de relatórios'".
Segundo o documento, a maior parte das entradas de dinheiro do marido de Isabel dos Santos foram canalizadas para o BESA em Angola e para o BIAC no Congo.

"Uma vez que estas transferências parecem ser proporcionais ao movimento de fundos que saíram de Angola para paraísos bancários com recurso a métodos não transparentes, a totalidade dos fluxos acima descritos são reportados como suspeitos", lê-se no documento.

O Expresso adianta que o JP Morgan também reportou com potencial de risco um conjunto de transferências de cinco milhões de dólares entre 2005 e 2011 com origem no BAI em Angola, tendo como titular a Clínica Sagrada Família, do grupo da Endiama, estatal angolana de prospeção e exploração de diamantes, para uma conta do já extinto BES titulada por uma empresa em Portugal.

"A suspeita era, de qualquer forma, inconsistente porque a hipótese que a funcionária do 'compliance' levantou era de que a destinatária dos fundos, uma companhia contendo no nome Prestação de Serviços, SA, poderia eventualmente ser a Santoro Finance, Prestação de Serviços, SA, uma das empresas do casal Isabel dos Santos e de Sindika em Lisboa", sendo que "o motivo estava no facto de ambas as empresas coincidirem parcialmente no nome".

O Expresso contactou Sindika Dokolo e os seus advogados, mas nenhum esteve disponível para comentar.

Entretanto, há ainda um outro relatório - de 18 de outubro de 2013 - enviado pela Standard Chartered, em Nova Iorque, para a FinCEN, que, embora não mencione a empresária angolana, refere "uma transferência de 18,7 milhões de dólares ocorrida sete anos antes, a 13 de outubro de 2006, tendo como origem a Unitel, a empresa de telecomunicações em Angola" da qual Isabel dos Santos é acionista e foi presidente, e que tinha como destino o BPI em Lisboa, numa conta em nome da empresa Vidatel Limited, e que tinha passado por outra conta em Nova Iorque.

"O relatório do banco é, de resto, um pouco confuso porque agrega um conjunto de transferências originadas em contas de múltiplas companhias com o nome Unitel, numa série de países, sendo que um delas é de facto a empresa de telecomunicações com sede em Angola de que Isabel Santos é acionista", refere. "A Vidatel é uma companhia offshore registada nas Ilhas Virgens Britânicas que tem como beneficiária Isabel dos Santos e, através da qual, ela detém 25% da Unitel em Angola".


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