Estacionei o carro no parque do hotel. Era cedo, havia mais de meia hora para matar. Passei ao "lobby", vi o bar e entrei. Sentei-me ao balcão, no único lugar disponível. Mas não pedi nada, aguardando que se resolvesse um qualquer contencioso entre um empregado contido, paciente e amável, e um feiíssimo cavalheiro que parecia um ogre da Tasmânia e que barafustava em voz alta contra não sei quê, num inglês que, porque rápido, chegava a parecer fluente, mas afectado de um sotaque tão carregado e estranho que o tornava ininteligível.
Aos poucos, fui começando a entendê-lo. Protestava – e com moderada razão – contra o facto de só haver sandes de queijo, fiambre e mistas. E começava já a olhar para mim de vez em quando, fugazmente, procurando porventura o meu apoio naquela guerra que me era alheia.
"Nem sequer têm sandes de pepino!" – disse-me de supetão, aproveitando a pausa proporcionada pelo empregado me estar a servir um "scotch" com água, que eu entretanto conseguira encomendar. Estava estabelecido o diálogo, mesmo que eu não o desejasse. Não se deixa sem resposta quem se nos dirige directamente.
Expliquei-lhe então que, muito embora usássemos o pepino na nossa culinária, não era um hábito português fazer sandes com ele. À semelhança, aliás, ainda que apenas do que dela conheço, da restante Europa continental. Só mesmo em Inglaterra é que há a tradição e o culto de tão duvidoso pitéu.
Sabia que podia falar de europeus à-vontade porque o ogre, pela tez, o atavio e o sotaque só podia ser levantino. Tive, de resto, ocasião para lhe perguntar pelas origens e ele respondeu-me: "Sou egípcio, mas vivo em Londres. Trabalho lá."
O mais irritante é que ele pontuava a conversa com os mais soezes vilipêndios ao empregado, apenas portador da má nova de não haver sandes de pepino. E isso, fui-me apercebendo, já instalara no resto do pequeno balcão uma vertigem retaliadora. Como qualquer político caído, que quer cavalgar uma vaga de fundo que lhe devolva o que já foi, eu achei que aquela onda era a minha e eu o patriota capaz de a conduzir.
Comecei então a convencê-lo de que, sendo (segundo ele me disse) a sua permanência em Lisboa tão curta, devia aproveitar para comer coisas típicas de cá. Volvendo a Londres, poderia comer as sandes de pepino que quisesse. Mas aqui, onde é de uso fazer e comer as sandes mais invulgares da Europa, isso tinha algum sentido? Os portugueses, virados ao Atlântico e com dois arquipélagos cultivadores de frutas exóticas, gostavam era disso. Sandes disso...
O ogre mostrou-se curioso e interessado. Ainda perguntou por que razão então só constavam da lista queijo e fiambre, mas eu atribuí tudo a um nosso preconceito, segundo o qual os turistas estrangeiros só estavam habituados a essas e não pediam as nossas. Ofereci-lhe então a sandes, argumento que se revelou fortíssimo. Chamei o empregado, expliquei-lhe a situação e – enquanto ele sorria e já se babava de gozo – perguntei o que é que se podia arranjar. Manga? Papaia? Kiwi? Nada. Tudo o que se podia arranjar era meloa... Prebenda dos céus! Não tinha pensado nisso, que excedia o pior da minha perfídia. "Traga então uma meloa, parta-a ao meio e meta essa metade em pão de forma fininho."
Largou para a cozinha numa pressa e com um gemido que era apenas a contenção do riso. Voltou com o pão de forma, de pacote, e com a meloa que abriu a meio e descascou ali bem à nossa frente. Depois, enfiou meia meloa entre duas fatias de pão. Só visto: a meloa transbordava o pão por todos os lados. O egípcio lançou-lhe a mão e os primeiros esguichos espirraram. Mas o grande festival começou com a primeira dentada e quando o pão já estava tão molhado que quase se desfazia. Escancarada a boca, a dentuça abateu-se sobre a sandes tipicamente portuguesa com a determinação de um alfange. Desviei o meu banco bem para o lado mesmo a tempo. A sofrida meloa esvaiu-se em jactos do seu sangue, de refrigerante natural, ao mesmo tempo que um volumoso fio de líquido lhe escorregou a correr pelas barbas grisalhas. A estranha vestimenta ia-se encharcando, mas ele olhava-me de soslaio com um ar apreciativo. A canalha circundante ria-se, o empregado também. O ogre acabou num traste e com as mãos cheias de pão desfeito.
"Muito bom", disse ele. "E ainda comia a outra metade, mas agora talvez sem pão." Que sim, disse eu. E paguei o meu uísque e a sandes de meloa, por entre desvelados agradecimentos. Saí .
Nós, portugueses, somos assim. Uns verdadeiros cavalheiros. E os melhores anfitriões do mundo.
[Texto original publico na Revista do Expresso de 27 de outubro de 2001]
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