Frei Éloi Leclerc, um dos melhores pensadores franciscanos de nosso tempo, sobrevivente dos campos de extermínio nazista de Buchenwald e muito conhecido entre nós por seus dois livros – “A sabedoria de um pobre” e “O Sol nasce em Assis” -, que alimentaram a vida espiritual de muitos cristãos de todas as gerações, faleceu no dia 13 de maio último, na Casa de Repouso das Pequenas Irmãs dos Pobres, em Saint Malo, com 95 anos.
Éloi Leclerc nasceu em 1921 em Landernau, localidade da Bretanha francesa, de uma família formada por 11 irmãos. Ingressou no Noviciado franciscano de Amiens em 1939, o ano em que se iniciou a segunda Guerra Mundial na Europa. Em 1943, trabalhando com milhares de jovens franceses na Alemanha, foi considerado ‘sujeito suspeito’ e deportado em 1944 para um campo de concentração em Buchenwald. Com a derrota nazi, regressou à França e, entre 1951 e 1983, foi lecionar Filosofia, época em que escreveu um dos maiores clássicos da espiritualidade: “A Sabedoria de um Pobre” (1959). Foi ordenado sacerdote em julho de 1948, em Poissy.
“As circunstâncias de minha vida, principalmente a prova dos campos nazis de Buchenwald e de Dachau, durante a última Guerra Mundial, levaram-me à pergunta sobre as possibilidades de uma verdadeira fraternidade entre as pessoas. Será que somos votados a dilacerar-nos sem fim, da maneira mais trágica? Será que é possível uma comunidade humana sem exclusão, sem tirania e sem desprezo? Não seria isto apenas um sonho? Nas minhas dúvidas, voltei-me para Francisco de Assis que me parecia o protótipo do ser humano fraternal, e cujo carisma foi em seu tempo ‘converter toda hostilidade em tensão fraterna, dentro de uma unidade de criação’ (P. Ricoeur)”, escreveu Leclerc no livro “O Sol Nasce em Assis”, um dos seus maiores sucessos no Brasil, lançado em 1999 e publicado pela Editora Vozes em 2000.
Neste livro, Leclerc conta que em abril de 1943, ele foi inesperadamente recrutado pelo Serviço de Trabalho Obrigatório (STO) na Alemanha (a França foi invadida pela Alemanha em 1940). Naquela ocasião eu era estudante de filosofia em Carrières-sous-Poissy, na residência de Champfleury, para onde se havia retirado o escolasticado franciscano. Éramos uns doze jovens religiosos”, conta Éloi. “Numa manhã de 1944, a Gestapo fez uma vasta batida policial nos acampamentos de jovens. Fomos presos mais de sessenta: padres, religiosos, seminaristas, jocistas, escoteiros… Todos acusados de propaganda antinazi e considerados indivíduos perigosos”, acrescenta o frade escritor, preso em Brauweiler, onde os jovens foram submetidos a interrogatórios violentos e até torturados. A Gestapo queria que confessassem que escondiam armas. Depois dos interrogatórios, foram enviados para o campo de concentração de Buchenwald, perto de Weimar, na Turíngia, onde um de seus confrades faleceu.
Para Leclerc, foi “a descida aos infernos”. Segundo ele, não havia passado um mês no campo e já contavam vários mortos em suas fileiras. “Aos olhos dos nossos carrascos não éramos mais homens: o objetivo deles era fazer-nos tomar consciência de que não tínhamos mais nenhuma dignidade humana e, por conseguinte, nenhum direito ao mínimo respeito, nem mesmo à vida”, relata Frei Éloi.
Dois momentos na vida de Leclerc: o campo de concentração em Buchenwald e São Francisco de Assis
Éloi foi libertado em 29 de abril de 1945 pelas tropas americanas, no campo de Dachau. “Iria passar alguns meses de repouso e de restabelecimento na Bretanha, junto com minha família”, escreve. Segundo o escritor, tudo convidava à alegria: pais, irmãos, a casa onde moravam, o jardim, o campo. O vale do Elorn se tornou mais belo. “Nossa casa estava situada no lugar chamado ‘La Fontaine blanche’. Um nome evocador, cheio de sonhos”, conta. Mas nada era como antes. “Não existia mais a inocente alegria de viver, feita de despreocupação e livre de toda desconfiança e de todo medo. O medo do homem não me largava. De noite, acordava sobressaltado, o suor escorrendo e a alma tomada de pavor. Elas sempre voltavam, aquelas imagens do horror. Elas me perseguiam. E não podia apagá-las”, confessava.
É com esses sentimentos que Éloi encontra em Francisco de Assis um bálsamo para sua alma. “Se seu ‘Cântico do Sol’ tem o esplendor da manhã, é precisamente porque ele surge no fim da noite. Se ele é o canto de todas as criaturas, é porque também foi o canto da maior solidão. E se é o canto de todos os humanos, é porque foi mais forte que todos os silêncios e que todas as violências: é o canto de todos os perdões”, refletia. Foi assim que nasceu “O Sol nasce em Assis”.
Segundo o escritor, no seu primeiro livro, “A Sabedoria de um Pobre”, pode-se ver em filigrana a grande pergunta que me atormentava depois da volta dos campos de extermínio: a fraternidade humana é possível? Nos anos sessenta, ainda publicaria “Exílio e ternura” (62) e “O Cântico das criaturas ou os Símbolos da união” (63). Sua produção cresceria nos anos 70 até se retirar para uma ermida de Bellefontaine, na Normandia. Ali também continuou escrevendo. Em 1981 publicou “Francisco de Assis, encontro do Evangelho e da história”, uma interessante obra que situa Francisco dentro do contexto económico, social e político de sua época, importante para compreender suas inquietações e aspirações, e as características da Ordem que fundou. Depois vieram as obras: “Mathias Grünewald, a noite é a minha luz” (1984), “O Reino Escondido” (1987), “Deus maior” (1990), “Caminho da contemplação” (1995), o “O Mestre do desejo” (1998) e finalmente o pequeno livro sobre Jeanne Jugan, o “Deserto e a Rosa”, que evoca a experiência espiritual da fundadora das Pequenas Irmãs dos Pobres. Um livro sobre o silêncio de Deus, especialmente na sociedade de hoje. “Ao descobrir a tragédia humana, eu mesmo estava confuso sobre o silêncio de Deus como alguns pretendem traduzir como ausência de Deus. Mas na Bíblia, a presença de Deus é muitas vezes silenciosa. Seu silêncio não é uma distância, pelo contrário … ele está incrivelmente perto”, disse em uma entrevista a Laurence Monroe.
Frei Leclerc destaca que entre as poucas coisas que se podem escapar da destruição do homem são a pureza e inocência. Esta ideia faz parte do prefácio da “Sabedoria de um pobre”, onde lamenta que o mais terrível do nosso tempo é que “nós perdemos a ingenuidade”. Nos seus livros, ele expressou claramente e poeticamente suas reflexões filosóficas sobre a fé. Toda a sua obra é marcada por uma espiritualidade tirada de uma situação que o obrigou a escolher entre esquecer sua alma no abismo, ou se embrenhar nas próprias entranhas da fé para conhecer o mistério de Deus. “A presença franciscana no mundo é ‘converter toda a hostilidade em tensão fraterna dentro da unidade de criação’, nas palavras de Paul Ricoeur. As tensões sempre existirão. Mas a tensão é frutífera. É necessário avançar e criar”, disse na mesma entrevista a Laurence Monroe.
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