terça-feira, 13 de dezembro de 2022
O mercado e o ensino em Portugal
Raquel Varela
Há uns anos a professora de matemática dos meus filhos (com a qual ninguém na turma precisava de explicações privadas ) encontrou-me no supermercado e disse-me que tinha pedido a reforma antecipada. Não se podia fazer nada inovador, “interessante com os miúdos”, não por causa dos miúdos! – ela tinha sido transformada numa “máquina de preparação para exames”, “deixou de ter pachorra” – “o director até me chamou para perguntar porque eu tinha ido para o pátio, onde havia um pequeno lago redondo”, explicar, se me lembro bem, algo como cálculo de formas geométricas. Com cada vez menos autonomia, imposta pelos directores nomeados e pela padronização “por baixo” dos exames, ela, cuja função era ensinar matemática a toda a turma, de forma apaixonante, desistiu. Estávamos então a fazer o inquérito às condições de trabalho dos professores, em que 19 mil responderam a 158 questões (uma taxa muito superior a qualquer sondagem realizada em Portugal), a taxa dos que desejavam reformar-se era mais de 80% bem como de exaustão emocional – mais de 70%. Uma professora escreveu-nos, está publicado no livro do estudo, que saiu há 2 meses, que se sentiu mais acarinhada no IPO, onde tratava um cancro, do que na escola...Temos dezenas de testemunhos de professores que preferiram sair com menos dinheiro do que continuar a exercer “uma mentira”, em péssimas condições, depois das reformas Crato/Lurdes Rodrigues. Uma delas foi minha professora de história, cuja paixão e seriedade com que ensinou na escola pública foram determinantes para a minha vida. Agradeço-lhe, para sempre. Não há progressão na carreira e isso acabou com a carreira – os professores de facto ficam toda a vida a ganhar o mesmo (1200 ou 1400 euros, hoje um salário mínimo em Lisboa ou Porto), porque através da avaliação individual de desempenho com quotas apenas um ou dois – e de acordo com a pontuação da escola ( o que inflaciona as notas, obrigando-os a mentir nas avaliações, segundo os testemunhos que recolhemos) – progredirem. Pode haver 20 excelentes, mas só um pode passar. Imaginem eu dizer isto aos meus alunos, vão fazer um teste, todos podem ter 20, mas só um terá direito a passar com 20. Uma criança de 6 anos acharia uma injustiça, o Ministério e o Governo não. Acresce que a reforma agora é calculada de acordo com média dos 14 melhores anos – ou seja, vão ter uma vida triste sem acesso a bens de lazer na reforma. À falta de autonomia, aos directores nomeados em vez de eleitos pelos pares, à ausência de cooperação imposta pela avaliação de desempenho, aos programas de “aprendizagens essenciais” (pressionados pelos empresários que querem trabalho barato) que retiram toda a paixão do conhecimento, ficando “tarefas” e “competências” desinteressantes, para alunos e professores, que aumentam a indisciplina, junta-se a cereja no bolo – a municipalização das escolas, em que deixa de haver um concurso onde são colocados pelas notas e passam a ser escolhidos, por um grupo de “notáveis” – sabe-se o futuro, a passar esta lei, os municípios mais ricos vão escolher e pagar mais a alguns professores, os outros vão sendo colocados em escolas piores, no fundo aquilo que já se fazia com as turmas – A para os melhores até ao J – para os desgraçados – passar a ser o modelo nacional. A isto vai-se juntar o apadrinhamento político, a perseguição, os favores, o assédio, como vão estes professores, na mão de empresários/municípios, que decidem os seus destinos, fazer greve ou contestar seja o que for? O que está em causa nas escolas não é mais um retrocesso social imposto aos professores. É a destruição completa do que resta da escola pública onde ainda havia nichos de qualidade – os professores serão uma espécie de ubers da educação, levados de vila para vila, serão prestadores de serviços. Daí a importância, para todos nós, desta greve. Como mãe usei todas as estratégias individuais e privadas para dar a melhor educação aos meus filhos e “safei-os”, em parte, da degradação a que fui assistindo como investigadora. Mas como cidadã deste país digo-vos que as nossas soluções individuais – recorrer as explicações ou colocá-los em escolas privadas muito boas – além de caríssimas, não resolvem a questão fundamental do país. E por isso não resolvem os problemas dos nossos filhos. Que país queremos para eles? A escola precisa de olhar os professores como intelectuais (sim, é uma profissão intelectual), com autonomia, recuperar a noção de currículo contra as “competências”, dar espaço pedagógico para que as aulas sejam apaixonantes, isso só se faz com conhecimento denso e profundo, precisa de ser uma escola que não desiste nem nivela por baixo, mas que ensina o melhor de tudo a todos (qualidade massificada, sim!); precisa de voltar a ter gestão democrática, eleição entre pares, avaliação colectiva, progressão sem quotas, cursos superiores com componente científica de 5 anos (e não de 3), e é preciso discutir de uma vez por todas se queremos ou não dar o melhor de qualidade a todos ou nivelamos sempre por baixo adaptando o currículo ao mercado de trabalho, pobre e desinteressante. Os notáveis, e os municípios, na sua maioria, são empresários que querem trabalho barato e pouco qualificado e os professores, com a municipalização, são uma peça deste jogo. A escola tem que debater e combater (é isso que esta greve faz!) a transformação dos professores em ubers digitais que formam alunos ubers digitais. A escola, afirmou-se, contra Deus e o Mercado, em defesa do Conhecimento, não pode servir o Mercado, tem que servir o conhecimento. Este é um debate por se fazer em Portugal, a greve que está em curso coloca o dedo na ferida de algumas destas questões e demonstra que, ao contrário de uma parte do país dirigente, contente com este rumo, os professores querem transformar e questionar decisões, tomadas sem os ouvir, sem os compreender, sem os escutar. Têm o meu apoio. A escola serve para dar aos alunos o melhor do conhecimento produzido pela humanidade, não serve, não pode servir, o Mercado. O Mercado tem que ser dominado pela democracia e pelo conhecimento. Não são os professores que devem ser escolhidos pelos “notáveis”, são os notáveis que devem ser escolhidos pelos professores. E assim deixariam de ser notáveis, que no fundo, é a Democracia.
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