sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Forte inundação em Lisboa - A Natureza está a dizer que temos de mudar de vida

Fonte: NIT


Num só dia caíram dois terços da água que costuma cair durante todo o mês de Dezembro. O resultado foi o que se viu. Fenómenos extremos com vento e chuva no Outono/Inverno e seca e fogo na Primavera/Verão serão cada vez mais comuns, se não mudarmos a nossa relação com o planeta, principalmente no que diz respeito ao consumo energético- refere Filipe Duarte dos Santos.

A chuva severa que se fez sentir por estes dias em várias latitudes, com especial incidência na cidade de Lisboa, traz à colação problemas que não são de hoje. Se por um lado, a existência de planeamento urbano (estará em cima da mesa um plano de obras até 2025) que responda de forma eficaz ao escoamento de águas pluviais ainda é uma miragem em muitos pontos da capital portuguesa, existe uma questão de fundo essencial a que não se tem vindo a dar resposta. Na opinião de Francisco Louçã, “apesar da atenção, do consenso científico, da preocupação, da pressão das Nações Unidas, das reuniões, continua a aumentar o que determina riscos como estes que acabamos de ver”. O ano de 2022 é já recordista de todos os tempos das emissões de gases com efeitos de estufa.

Um problema de antanho. A Região de Lisboa conheceu uma forte pressão urbana, especialmente a partir da década de 1960, traduzida, entre outros aspetos, pelo grande aumento da área construída e, dentro desta, das áreas urbanas de génese ilegal (AUGI). O desordenamento do território daí resultante refletiu- se, não só no agravamento da perigosidade potencial das cheias, motivada pelo aumento do escoamento superficial e da carga sólida transportada (destruição do coberto vegetal, aumento de erosão das vertentes, impermeabilização dos solos), mas também no incremento da vulnerabilidade decorrente da ocupação indevida dos leitos de cheia e, por vezes, dos leitos menores dos cursos de água.

Um fenómeno extremo, com um possível "comboio de tempestades" aliado a uma cidade mal preparada e algum "azar" à mistura, pode explicar parte do caos que acordou a região de Lisboa esta quinta-feira. A geógrafa Maria José Roxo sublinha que a situação não é inédita, mas a catástrofe podia ter sido minimizada. Falhou, como sempre, a prevenção, diz a especialista que insiste na urgência de preparar o território para estes e outros fenómenos extremos. Sobre eventuais falhas no sistema de avisos à população, Maria José Roxo considera que o mais importante é que "as pessoas não percebem o que significa um aviso amarelo, laranja ou vermelho".

"Tudo o que era estrutural e que podia controlar este tipo de situações falhou. Agora, só nos resta correr atrás do prejuízo, como tantas vezes falei. Como se isto fosse inédito... não é! Lamento, não é inédito. A área de Algés e de Alcântara e outras zonas da cidade sofrem com frequência com este tipo de situações, com menos intensidade. Noutras áreas do país também. Nós, que fazemos investigação, passamos o tempo a falar nestas coisas e é como se estivéssemos a pregar para os peixes", lamenta Maria José Roxo. É frustrante, admite a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. "Agora, não podemos fazer grande coisa. Agora, resta limpar."

O prejuízo era evitável, defende a geógrafa, admitindo que o facto de Lisboa se ter transformado numa cidade muito impermeabilizada ajuda a aumentar o problema. Por outro lado, houve ainda mais uma agravante. "Tivemos azar porque na parte baixa de Lisboa esta chuva intensa coincidiu com a maré cheia, o que fez com que a água não conseguisse sair." Ainda assim, Maria José Roxo reconhece que houve momentos em que "a chuva era tão forte, que rapidamente as estradas se transformaram em rios".

O extremo vai tornar-se comum
Apesar de não ser inédito, é inegável que se tratou de um fenómeno extremo. "São extremos. É uma grande quantidade de água em pouco tempo e com muita intensidade." Mas as cidades têm de estar preparadas para extremos, defende. "O problema é esse. Nunca se pensa em soluções estruturais para extremos, depois, quando há uma grande quantidade de água para escoar, não conseguimos responder." Maria José Roxo reconhece que o que se passou esta madrugada em Lisboa foi grave. "O que é que o torna mais grave? Cidades cada vez mais impermeabilizadas, por exemplo. Isso e má planificação urbana e falta de ordenamento do território."

Não há muito tempo, Maria José Roxo era uma das especialistas procuradas para falar sobre a grave situação de seca no país. "Eu sempre disse que estávamos em seca, mas que o que devíamos fazer era prepararmo-nos para as inundações. O que acontece em Portugal é que nunca nos preparamos para o que vem a seguir. Não há estratégia, não há planeamento", conclui.

Criar túneis de escoamento não chega
​Temos de limpar sarjetas, ter cuidados especiais com os cursos de água agindo nos locais, criar bacias de retenção nas cidades, limpar as barragens. Sobre o projecto antigo de criação de túneis de escoamento que o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, foi agora recuperar e promete executar, a geógrafa admite que também pode ajudar. Mas só isso não chega. É preciso, por exemplo, olhar a montante, agir na confluência de cursos de água que sabemos que podem ser problemáticos.

É importante olhar para a natureza e território como um sistema e ver como todas as peças se ligam. "Nós ainda vamos ter mais más notícias por causa desta chuva. Deslizamentos de terra, desabamentos, queda de blocos. Não há só impacto nas cidades. No país, vamos ter outros acontecimentos relacionados com estas chuvas de alta intensidade", alerta.

E, já agora, importa dizer que esta quantidade de chuva não terá sequer um forte lado positivo na parte de repor a situação de carência nas barragens e albufeiras. Porque é demasiado num curto espaço de tempo, explica Maria José Roxo. "Vai encher e entulhar mais as barragens. Estas chuvas não são assim tão benéficas quanto isso. É benéfico porque precisamos de água. Mas o que era preciso era uma chuva mais controlada e que permitisse encher as nascentes e que não provocasse erosão nos solos, nem estas catástrofes nas cidades."

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