terça-feira, 9 de agosto de 2022

Poemas Anti-Salazaristas de Fernando Pessoa


Fernando Pessoa deixou milhares de páginas, na maioria inéditas, com reflexões sobre a sociedade e a política do seu tempo. De singular independência crítica, as suas análises assentam numa vasta cultura, fruto do autodidactismo e da formação britânica. Na fase de maturidade contemplada nesta recolha – entre 1923 e a sua morte, em 1935 – Pessoa assistiu ao advento do autoritarismo político: o triunfo do fascismo em Itália, a instauração de ditaduras militares em Espanha e Portugal, a tomada do poder pelos nazis na Alemanha e a formação do Estado Novo de Salazar. O seu pensamento político seguiu um trajecto por vezes sinuoso e hesitante, que o levaria da crítica demolidora da República democrática a uma defesa condicional da Ditadura Militar e, por fim, à rejeição do salazarismo, expressa inequivocamente no ano final da sua vida. Aliás, Pessoa foi pioneiro na condenação simultânea do comunismo e dos fascismos. Nacionalista místico, individualista radical e conservador liberal de “estilo inglês”, sempre céptico da democracia e do Estado, acabou silenciado pelo regime de Salazar quando interveio publicamente em nome da liberdade do espírito e da dignidade humana.

Coitadinho do Tiraninho
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho,
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
E ninguém sabe porquê.

Mata os piolhos maiores 
Mata os piolhos maiores
Essa droga que tu dizes.
Mas inda há bichos piores.
Vê lá se arranjas veneno
(Ou grande, ou médio e pequeno)
Para matar directrizes.

O rei reside em segredo
O rei reside em segredo
No governar da Nação,
Que é um realismo com medo
Chama-se nação ao Rei
E tudo isto é Rei-Nação.
A República pragmática
Que hoje temos já não é
A meretriz democrática.
Como deixou de ser pública
Agora é somente Ré.

E o Salazar, artefacto
E o Salazar, artefacto
De um deus de régua e caneta,
Um materialão abstracto
Que crê que a ordem é alma
E que uma estrada a completa.
Não há poesia nele
Ai, nosso Sidónio Pais,
Tu é que eras português!
Um materialão abstracto,
Vive na orgia do exacto
Manda o país penhorado
Por uma estrada melhor.

Dizem que o Jardim Zoológico
Dizem que o Jardim Zoológico
Tem sido mais concorrido
Por prolongada assistência
Atenta a cada animal.
Mas isso que é senão lógico
Se acabou
A concorrência
Porque fechou
A Assembleia Nacional?

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