quarta-feira, 23 de março de 2022

Maria Ceguinha


Era uma mulher robusta, uma pele invejável, carinhosa e muito minha amiga.
O marido dela trabalhava na recolha do lixo e tinha sempre um livro ou dois para me dar. Aos domingos de manhã, depois da missa e da catequese, passava pela casa deles. Não tinham televisão. Era um T0, em termos de linguagem actual. Cozinhava muito bem. 
Por vezes convidavam para almoçar com eles. Mas tinha outros planos. Queria chegar a minha casa para não perder nenhum episódio do Verão Azul. Lá vinha muito contente pela rua abaixo com mais um livro ou dos "Sete" ou dos "Cinco" de Enid Blyton. Li-os todos graças ao casal. 
Os domingos de tarde, por vezes, ocupava-os a ver o Júlio Isidro. Outras vezes tinha reuniões de escuteiros nos Carvalhos, onde ia com muito gosto. Certos domingos, ia desafiar o Pedro para irmos aos gambuzinos. Era um riacho que passava numa pradaria ali perto onde ele vivia. Quando chegava a casa punha-os num jarro grande mas morriam todos. Grandes e pequenos. Nem eu, nem minha mãe sabiam o que comiam. Deixei de trazer gambuzinos. Foi a decisão mais correcta. 
Certa vez capturei uma salamandra-lusitânica e um tritão-ibérico. Das duas vezes, a minha mãe passou-se. Não gostava mesmo nada destes animais viscosos. Lá ia eu retorná-los à Natureza, com pena minha porque queria estudá-los.
A D. Maria não era totalmente ceguinha. Dizia que via os vultos e algumas cores. Era amigo de a ajudar. Quando podia, estava ela a fazer compras, ajudava-a a carregar os sacos e dava-lhe o meu braço para ela não cair e estar segura até chegar a casa.

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