Os filhos da pandemia não escrevem, não falam, não lêem, não compreendem, não interpretam, não pensam…Retirem-lhes o telemóvel e as redes sociais e ficaremos perante seres desprovidos de qualquer interesse. O retrato de uma geração profundamente afetada pela pandemia, traçado pela professora Carmo Machado.
A geração de professores a que pertenço, nascida na década de sessenta, foi marcada pela utopia e pelo sonho. Acreditávamos que a escola podia fazer a diferença na vida dos nossos alunos, que podia mudar vidas. Recordo com enorme prazer todos os momentos em que tudo – literalmente, tudo – fazíamos pela escola pública, desde gastarmos resmas de papel e tinteiros do nosso parco ordenado, ou dedicarmo-nos – noites a fio – a preparar atividades e instrumentos de avaliação, a organizarmos visitas de estudo, a arquitetar celebrações para isto e para aquilo e a procurar que a escola fosse – e era – um local de prazer para todos.
Esta geração da utopia era constituída por todos aqueles que seguiram a carreira docente por paixão, mesmo quando estavam outras opções em cima da mesa. Depois da licenciatura de quatro anos e de uma formação universitária de especialização em ensino de dois anos, muitos de nós ainda avançámos na pesquisa e tirámos mestrados e doutoramentos, aos quais dedicámos uma boa parte do nosso tempo e do nosso (pouco) dinheiro. Entrámos na carreira docente com amor e foi a ela que dedicámos grande parte da nossa vida.
Depois… Depois começaram as alterações às regras na carreira sem qualquer aviso prévio, tentaram dividir-nos em professores titulares e professores não titulares, anularam direitos consagrados no nosso estatuto, congelaram-nos os ordenados e a imaginação e, por fim, roubaram-nos descaradamente muitos anos de serviço que, não sendo a solução para o nosso baixo poder de compra, podiam no mínimo permitir-nos uma maior – ainda que leve – dignidade profissional e pessoal. Com que tristeza ouço com frequência dizer a um professor que raramente compra livros ou vai ao teatro. De facto, fizeram de nós meros funcionários e das escolas meras repartições públicas de ensino de massas, transformadas em verdadeiras fábricas de papel!
Não querendo aqui balizar o primeiro grande momento da derrocada da dignidade docente, talvez me atrevesse a referir os quatro anos e sete meses de má memória em que Maria de Lurdes Rodrigues foi ministra da Educação (a ministra que cumpriu o maior mandato à frente da Educação em Portugal). Mas muitos outros se seguiram e parece não se prever um fim. Entretanto, e se estivermos – como estamos – atentos à comunicação social, raro é o dia em que os temas relacionados com os professores (ou a falta deles), os alunos, as escolas e o ensino em geral não estão na ordem do dia.
Vários estudos têm vindo a lume sobre duas problemáticas de grande atualidade: por um lado, a já existente escassez de professores e, por outro, sobre os efeitos da pandemia nas aprendizagens dos alunos. De facto, sobre a primeira, sabemos que nos próximos anos, praticamente quase todos os professores que são referência nas nossas escolas – pela sua entrega à profissão, pela sua humanidade, pelo seu espírito de missão, pelos cargos desempenhados com competência, pela pedagogia, pelo amor ao ensino e ao alunos, ter-se-ão reformado. A escola, como eu a conheci, está a desaparecer todos os dias. Recordo com saudade e um sorriso no rosto os jantares de Natal, os almoços de Páscoa, as sardinhadas pelo Santo António seguidas de baile com acompanhamento musical a preceito, as castanhas e a jeropiga deixada na sala dos professores, os lanches de cada turma no final de período, com mesas repletas de tudo um pouco, as viagens e as visitas de estudo organizadas e feitas com tanta alegria e companheirismo, a amena cavaqueira entre alunos e professores, nos intervalos das aulas, pelos corredores, no bar ou na sala de convívio… Até recordo com carinho as muitas aulas dadas de luvas e gorro, quando o frio era insuportável e entrava pelas janelas que mal fechavam, os aquecedores que trazíamos de casa e colocávamos, às escondidas, para nos aquecermos todos, professores e alunos. Nesses tempos, fazíamos tudo pela escola e éramos felizes. Quem matou a escola pública? Quem nos matou?
Mas é sobre os efeitos da pandemia nos nossos alunos que hoje importa falar. Chegámos ao final do primeiro período de mais um ano escolar atípico, em que os alunos apesar de estarem presencialmente nas nossas salas de aula, transportam às costas pesadas mochilas carregadas de profundos traumas provocados pelo confinamento e pelos dois anos letivos anteriores, vividos com muito esforço pessoal e familiar, entre ensino à distância e confinamento. O estudo "Efeitos da Pandemia Covid-19 na Educação: desigualdades e medidas de equidade”, solicitado pelo Parlamento ao Conselho Nacional de Educação, veio apenas clarificar junto da opinião pública algumas das consequências observadas, sentidas e vividas pelos professores e decorrentes do contacto diário com os alunos. Se o aumento da ansiedade e de estados de depressão foram uma realidade constatada por todos nós, é sobretudo nas aprendizagens que situação é preocupante.
Este primeiro período que agora termina decorreu com a normalidade possível. Nas escolas, sentiram-se as consequências no comportamento e no aproveitamento dos alunos que experienciaram, nos dois anos anteriores, uma escola distante e incompleta. Se, no que respeita aos comportamentos, os problemas disciplinares aumentaram e os professores lidam diariamente com atitudes disfuncionais dentro e fora da sala de aula, quanto às aprendizagens, talvez tenha chegado a hora de chamar as coisas pelos seus nomes. Os miúdos do sétimo ano de escolaridade parecem ter saído diretamente do primeiro ciclo e, mesmo muito grave, é observar alunos do nono ano de escolaridade com atitudes e conhecimentos de sétimo. Se analisarmos com atenção, no final deste primeiro período, os resultados dos alunos que entraram no sétimo ano de escolaridade neste ano letivo, verificaremos a quase ausência de competências, conhecimentos e atitudes expetáveis para o nível de escolaridade em que se encontram. O mesmo se passa com os alunos do nono ano de escolaridade que atingem este nível de ensino – o último da escolaridade básica – como se agora a estivessem a iniciar. São graves e preocupantes as lacunas, os problemas, o desconhecimento, a imaturidade, a incompetência nos mais variados domínios. Porém, é em algumas turmas do ensino secundário que a situação parece ser verdadeiramente calamitosa, especialmente se nos focarmos no que acontece nos cursos profissionais. Sabemos, por experiência própria e pela literatura existente, que estes cursos são direcionados para a vida ativa e para uma saída profissional. No entanto, há competências essenciais que não serão, nem de perto nem de longe, recuperadas e/ou alcançadas. No que aos cursos de prosseguimento de estudos diz respeito, só muito esforço, dedicação e trabalho permitirão que os alunos alcancem as aprendizagens essenciais. Os filhos da pandemia não escrevem, não falam, não lêem, não compreendem, não interpretam, não pensam… O desinteresse pelas conteúdos curriculares e a alienação pelo conhecimento em geral são perigosamente alarmantes. Retirem-lhes o telemóvel e as redes sociais e ficaremos perante seres desprovidos de qualquer interesse. Se antes dos confinamentos, o vício da tecnologia já era preocupante, quase dois anos depois do primeiro encerramento das escolas, estes comportamentos de adição pioraram e nada voltará a ser como antes. Alguns leitores dirão que nem todos os alunos são assim. Nós dizemos que são cada vez mais. Já antes da pandemia, o neurocientista francês Michel Desmurget, no seu livro de 2019 intitulado A Fábrica de Cretinos Digitais, chamava a atenção para a descerebração provocada pelo uso e abuso dos recursos digitais por parte dos jovens. Associando o vício do digital ao crack, Desmurget alerta para algumas consequências do uso exagerado dos recursos digitais como a diminuição da capacidade linguística e comunicativa, da concentração e do conhecimento de contexto. Estamos perante um admirável mundo novo com o qual a escola e os professores não conseguem competir.
Não culpemos apenas a pandemia! Todos os problemas com que hoje nos deparamos vinham a dar sinais de alerta há muito tempo e nós, nas escolas, tínhamos a consciência plena de que o futuro do ensino público não se avizinhava sorridente. Se os professores ficaram ainda mais assoberbados de tarefas burocráticas e viram a sua condição profissional degradar-se de ano para ano, é dos alunos que importa cuidar. Conseguiremos, através das aprendizagens essenciais, recuperar estes indivíduos que viram as suas vidas viradas do avesso? Facilitaremos ainda mais do que antes, de forma a permitir que o insucesso não alastre? Como encontrar tempo para ensinar e avaliar eficazmente, não estando previstas nos horários dos professores as intermináveis horas gastas a avaliar? Como mostrar aos alunos e encarregados de educação a importância da escola e do professor, quando os nossos governantes são os primeiros a contar com o nosso espírito de missão? E quem são estes jovens que regressaram à escola, sem esperança nem motivação, tementes a um novo confinamento, incapazes de perceber ainda o impacto que estes dois anos virão a ter nas suas vidas?
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