domingo, 16 de janeiro de 2022

Assembleias de cidadãos: “Podemos ser muito mais poderosos do que somos, politicamente”

Manuel Arriaga, um dos fundadores do movimento de participação popular, explica como as Assembleias de Cidadãos podem criar uma vida cívica mais ativa e saudável. E podia ser em Lisboa.

Apesar do momento entusiasmante que vivemos agora – eleições dão sempre debates nas tvs, campanha eleitoral, etc. -, a verdade é que a democracia representativa podia funcionar melhor, e uma das provas disso é a crescente abstenção.

Uma das falhas que se lhe aponta é a representatividade: faz sentido que os cidadãos participem diretamente apenas uma vez de quatro em quatro anos? Manuel Arriaga faz parte de um grupo de pessoas que defende que não. E mais: hoje, temos meios tecnológicos e políticos para permitir uma maior participação contínua dos cidadãos.

Professor da Universidade de Nova Iorque (NYU) e “visiting fellow” do Centro para a Inovação Digital em Cambridge, Manuel Arriaga é um dos fundadores do Forum dos Cidadãos, uma experiência que pretende trazer as opiniões informadas dos portugueses para o debate político. Também escreveu um livro chamado Reinventar a Democracia, onde conta porque chegámos aqui e o que fazer para mudar.

Estamos em plena época eleitoral, viemos das autárquicas para as legislativas. É o auge da democracia representativa, em que as pessoas se sentem mais poderosas e em que de facto podem intervir. Somos assim tão poderosos, votando?
No regime que temos, eu diria que não. Com estes mecanismos eleitorais que temos, diria mesmo que somos impotentes, o contrário de poderosos.

E isso podia ser diferente? Como?
Podemos ser, sim, potencialmente, muito mais poderosos do que isto. Para isso teríamos de conseguir alterar os canais de participação que temos para que eles captem muito mais do potencial e capacidade dos cidadãos. O sistema que temos atualmente é baseado em fazer uma cruz a cada par de anos…

O que é que podia ser de outra forma? Como é que funcionam as tais Assembleias de Cidadãos que já estão a ser experimentadas em vários países, nomeadamente ao nível das cidades?
Um painel alargado de cidadãos, sejam munícipes ou cidadãos de um estado ou residentes de uma qualquer região ou divisão administrativa do território, é escolhido através do processo de amostragem, mas com escolha aleatória dos participantes. Forma-se um painel de algumas dezenas ou mesmo uma ou duas centenas de cidadãos comuns que são convidados, puxados para o sistema, ao contrário de quem tipicamente toma a iniciativa de se envolver na política.

É algo bem diferente: as pessoas são convidadas! Dizemos: “Não quer participar e ser remunerado pelo seu tempo para se envolver num processo de decisão coletiva sobre um tema de política importante?”. Estas pessoas são trazidas para a Assembleia de Cidadãos, aprendem sobre o tema com especialistas com diferentes perspetivas, ouvem representantes de diferentes partidos e de diferentes grupos de interesse da sociedade civil… E depois, através de um processo deliberativo, elaboram propostas. No final, os cidadãos tornam público um conjunto de medidas sobre o tema às instituições públicas, aos órgãos de comunicação social e ao público em geral.Fotos da experiência realizada no Forum dos Cidadãos, em 2018, sobre migrações.

Como e porque é que essas pessoas são mais representativas que os políticos que são eleitos, e que são muitos, pelo povo?
A representatividade tem vários sentidos. Podemos estar a falar do representativo no sentido de alguém que se torna nosso representante porque recebe um mandato para tal, quando nós delegamos poder e competências a alguém. É essa a atual democracia representativa.

Quando falamos no contexto das Assembleias de Cidadãos, elas são mais representativas da população em geral num sentido estatístico, de amostragem. É um microcosmo da população como um todo. Ou seja, se há 51% de mulheres, vamos tender a ter 51% de mulheres nos painéis. Se há 25% de cidadãos com mais de 65 anos, vamos tender a ter 25% de cidadãos com mais de 65 anos numa Assembleia de Cidadãos.

No universo atual da política, as posições de topo e de chefia continuam a ser dominadas por homens e os perfis socioeconómicos são bastante mais afunilados e reduzidos do que na população como um todo. Isto é muito distante daquilo que é uma Assembleia de Cidadãos.


E como é que essas pessoas, normais, têm conhecimentos para decidir o que quer que seja?
Um professor de Stanford, James Fishkin, tem uma vasta obra publicada pelo Centro de Democracia Deliberativa, liderado por ele, a atestar a profunda competência do cidadão comum, quando lhe é dado o tempo, os recursos e o contexto necessários para ele fazer um bom trabalho.

“Ah, o cidadão é incapaz”, dizem. Há dois problemas com a ideia de considerar um cidadão incapaz: uma é a nossa perceção enviesada, porque é baseada no que ouvimos qualquer desconhecido dizer no café ao ler as “gordas” do Correio da Manhã… Só nos lembramos das maiores barbaridades que são ditas e não nos lembramos dos outros 99% em que alguém não disse nada de tão chocante.

Segundo, é não termos noção de que o contexto determina fortemente o nosso comportamento, como os académicos das ciências sociais nos dizem há décadas. Converso num registo bem diferente daquele em que dou aulas, do que estou num bar numa sexta-feira à noite. Se esse 1% que faz barbaridades for confrontado com participantes e experiências profundamente diferentes da sua pode aprender sobre o tema, e se o processo estiver estruturado para a co-construção de propostas concretas sobre temas, em vez de fazer gritos identitários, produzem-se resultados completamente diferentes.

Isso não é pensamento otimista? Aqui, por exemplo, na Mensagem, temos algumas experiências com polarização das opiniões que nos chegam em vários fóruns…
Seja através das redes sociais, por excelência um ambiente de comportamento tóxico de extremar posições, seja em ambientes presenciais em que é preciso motivação para dar o passo à frente, isso são já mecanismos de autosseleção que trazem para a esfera pública quem tem opiniões muito mais vincadas e fortes do que o grosso da população. Esse grosso que não vai escrever no Twitter, nem vai aparecer numa reunião ao final do dia para fazer parte de uma comunidade engajada em Lisboa. É uma pequena franja da população e daí essa perceção, diria eu.

Entrevista completa aqui

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