domingo, 4 de julho de 2021

Nós, os das bicicletas, somos Patrizia Paradiso

Foto: Homenagem a Patrizia Paradiso, 3 de Julho- Lisboa


Um pequeno exemplo do dia a dia. Trabalho em Matosinhos-Sul e existe uma pequena ciclovia, já perto do mar, que atravessa uma rua (Brito Capelo) com duas faixas para automóveis, sentido único. Uso-a praticamente todos os dias e, naquele ponto, os carros têm de subir para um patamar ligeiramente superior da via - as duas faixas deixam de ser alcatrão para ser granito - para dar prioridade a peões e bicicletas. Há ainda uma placa a sinalizar isso mesmo. Quantas vezes estive a um passo de ser atropelado com a bicicleta? Muitas. E só não fui porque sei o país em que vivo: paro e atravesso apenas quando percebo que o veículo me vai deixar passar. É que, apesar de estarem a velocidade quase zero, alguns condutores aceleram instintivamente, irritados com a existência daquele obstáculo ao seu império de quatro rodas. E já me aconteceu de tudo: perante os meus protestos, param para insultar, e um condutor conseguiu mesmo atirar-me ao chão.

Quando isso aconteceu, estava por perto um polícia. Veio ver se precisava de ajuda. Disse-lhe que sim: precisava que a via fosse mais bem sinalizada. A resposta dele foi curiosa: sim, tinham comunicado à Câmara de Matosinhos. Havia ali problemas, frequentemente. Mas a informação que tinham na PSP era a de que a câmara não alterava nada porque o arquiteto não deixava. Foi há dois anos. Continua igual.

Talvez devesse ter levado o caso mais longe, mas o que se passa à volta mostra que as "ciclovias" são vias faz-de-conta. Explico: o início desta miniciclovia, com apenas 1 km, inicia-se numa rua em que a entrada para a própria ciclovia se faz entre carros estacionados - não há, sequer, um pequeno acesso reservado. E, entretanto, o próprio acesso não tem uma rampa - é bater com a roda na berma do passeio e subir... (terá sido o mesmo arquiteto?).

Outro detalhe: esta ciclovia (designada por Broadway - fancy, não?!) inicia-se numa rua que só tem um sentido. No regresso, tem de se andar pelo passeio ou em contramão. Era necessário gastar-se uma lata de tinta e marcar-se um pequeno corredor de acesso até às imediações do Parque da Cidade através de uma rua com três faixas e sem trânsito. Certamente ninguém da câmara passou por lá, uma única vez, para perceber "a obra".

As ciclovias e a prioridade aos ciclistas - em certo sentido, a questão ambiental - não são levadas a sério. As autarquias fazem-nas, aos poucos, mas como os presidentes e vereadores não as usam, são "números verdes". É pena, porque iam gostar, compreender melhor as suas cidades e nunca mais fariam outra coisa. Além disso, os condutores que odeiam as bicicletas encontram muitos erros nos ciclistas mas nunca lhes ocorre pensar que talvez o ciclista seja o único a garantir o ar que ambos respiram. Todavia, a questão essencial é o menosprezo pela pessoa-ciclista que está na estrada. Desde a desatenção à velocidade, passando pelo novo colossal perigo - os motards Uber Eats, Glovo,... , tudo pode acontecer.

Ontem foi homenageada Patrizia Paradiso, que um dia deixou Itália para ser professora e investigadora em Portugal e morre aos 37 anos, atropelada, grávida de quatro meses, num sábado à tarde em que vibrava com a luz e o encanto de Lisboa e do Tejo. Uma mulher grávida, inseparável da sua bicicleta. Vítima do costume: uma desatenção misturada com velocidade. E assim termina uma vida com tudo para ser ainda mais brilhante. Patrizia passa a ser a minha heroína de duas rodas e as minhas camisolas brancas passam a ser dela. Prémio Patrizia Paradiso. Em cada dia que regresso a casa inteiro.

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